ESTUDO DE CASO – FONOAUDIOLOGIA E VIOLÊNCIA FAMILIAR
Milica Satake Noguchi
Apresentador(a) de Caso
 
Esta apresentação procura abordar um tema ainda pouco estudado na Fonoaudiologia – a violência familiar contra crianças e adolescentes - apresentando um panorama das principais questões relacionadas a este grave problema. Essa violência considerada aqui como sinônimo de maus-tratos, se “manifesta nas relações interpessoais que ocorrem entre os membros de uma família (...) causando prejuízo a um ou mais dos familiares. As crianças e adolescentes costumam ser vítimas privilegiadas, por serem hierarquicamente menos poderosas no equilíbrio familiar e pelo grau de fragilidade e dependência próprias dessas faixas etárias” (Assis & Constantino, 2003: 170). Essa forma de violência pode ser classificada nos seguintes tipos: violência física, sexual, psicológica e negligência ou abandono. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o profissional da saúde passa a ter o dever de notificar os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos ao Conselho Tutelar (artigo 13). A notificação porém, não deve ser vista como o cumprimento de uma obrigação que tem fim em si mesma. É necessário que o profissional da saúde acompanhe o trabalho do Conselho Tutelar construindo uma parceria que permita compartilhar a decisão tomada para o melhor encaminhamento dos casos atendidos. Apesar das exigências éticas e legais que este problema coloca ao profissional da saúde, o número de notificações ainda é muito pequeno. Segundo dados da Assessoria de Prevenção de Acidentes e Violência/APAV da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ, 2004) no período de julho de 1999 a julho de 2002 foram realizadas 3628 notificações, sendo que somente 1 (uma) notificação foi realizada por fonoaudiólogo. Ao contrário do que se constata nos dias de hoje, o fonoaudiólogo é um profissional que deveria ocupar um lugar de destaque na identificação e acompanhamento dos casos de violência em função das peculiaridades que caracterizam este atendimento e que propiciam a experiência com estes casos: (1) o contato freqüente e regular com a criança ou adolescente; (2) um período longo de permanência somente com estes (sem a presença dos pais ou responsáveis); (3) o conhecimento de seu cotidiano; (4) a observação e manuseio corporal em certos casos; (5) uma estreita relação com a família (Noguchi & Assis, 2003). Além disso, diversos estudos apontaram para a relação existente entre alterações de linguagem e maus-tratos (Eigsti & Cicchetti, 2004) o que faz com que o fonoaudiólogo tenha um importante papel na identificação desses casos, já que por trás das queixas fonoaudiológicas pode existir uma dinâmica de violência. Deve-se considerar também o fato de que este profissional trabalha com a população portadora de deficiência que é considerada de alto risco para sofrer maus-tratos (Sullivan et al., 1991). O papel do fonoaudiólogo nesta área é de extrema importância, já que seu trabalho possibilita transpor as barreiras comunicativas dessa população e, conseqüentemente, ajuda a romper o silêncio daqueles que estão sendo vítimas de violência. Além disso, por atuar dentro de instituições especializadas, pode colaborar na construção de uma rotina institucional para o enfrentamento desse problema identificando etapas e atribuições de diferentes atores. As razões deste tema ter se mantido “invisível” por tanto tempo na Fonoaudiologia – o que repercute no pequeno número de notificações realizadas por esse profissional e na escassez de publicações sobre o tema - foram estudadas no trabalho de Noguchi (2005) e Noguchi et al. (2004). As principais razões encontradas por estes autores são: - a tradição corretivo-normatizadora que norteou o início da prática fonoaudiológica em São Paulo e ainda se faz presente nos dias de hoje. Esta visão dissocia o distúrbio da comunicação do sujeito que a traz, impossibilitando uma compreensão mais ampla e conseqüentemente, deixando de lado uma possível situação de violência que lhe é inflingida; - ao isolamento que caracteriza sua atuação clínica e o distanciamento de instituições públicas, como aponta os resultados de um inquérito realizado com fonoaudiólogos do município do Rio de Janeiro no ano de 2003 (Noguchi et al., 2004). Considerando que a maioria dos entrevistados tem como um dos locais de trabalho ou como único local o consultório ou clínica particular (71%), isto pode significar que tais profissionais não contam com um apoio institucional para lidar com os casos de maus-tratos, o que dificulta o processo de notificação. Para esses fonoaudiólogos que não se inserem em equipes de saúde, realizar a notificação significa enfrentar este processo de forma solitária. Outro resultado que aponta nesta mesma direção é o que indicou que mais fonoaudiólogos que identificaram e atenderam casos de maus-tratos trabalhavam em unidades públicas de saúde. - os resultados desse mesmo inquérito sugerem que a dificuldade de notificação não parece estar relacionada somente à falta de informação deste profissional, já que a maioria conhece o papel dos Conselhos Tutelares. É preciso considerar que a abordagem dos casos de maus-tratos é uma tarefa muito pesada do ponto de vista emocional para o profissional da saúde. A situação dos maus-tratos pode ser tão ameaçadora para esse que sua única possibilidade é a negação. Esta preocupação já foi apontada no manual do Ministério da Saúde (Brasil, 2001) que indica a necessidade de se criar espaços de discussão que possam dar um respaldo psicológico à equipe. No entanto, a oportunidade de trabalhar tais questões raramente chega aos fonoaudiólogos já que a maioria não está inserida na rede pública. O isolamento desse profissional faz com que tenha que enfrentar o problema sozinho, apesar de não ser esta a conduta mais adequada. Esse mesmo manual recomenda que o profissional e a vítima não ajam sozinhos para evitar riscos maiores devendo, sempre que possível, se inserir em uma rede de serviços especializados. A falta de preparo do fonoaudiólogo, como apontam os resultados desse mesmo inquérito, faz com que as famílias com dinâmicas de violência abandonem o tratamento deixando estas crianças e adolescentes em situação de risco. O problema dos maus-tratos dessa forma, coloca um grande desafio aos profissionais da saúde que atuam na área clínica: a necessidade de uma abordagem interdisciplinar. Tarefa esta bastante difícil, considerando-se que muitas disciplinas vão se construindo “demarcando territórios”, negociando constantemente até onde vai o saber e a atuação de um e de outro profissional. A violência rompe a “política de boa vizinhança” e, pela força e impacto que causa nos profissionais que se deparam com ela, impõem uma abordagem mais ampla e integrada, recusando um enfrentamento isolado que uma ou outra disciplina venha a ter. Este é provavelmente o grande aprendizado que a experiência com maus-tratos nos proporciona. Este é também o grande desafio a ser enfrentado por todos nós. A estratégia adotada por setores da saúde para a disseminação de informação sobre os maus-tratos está voltada principalmente aos profissionais da rede pública. Considerando as características da configuração do trabalho do fonoaudiólogo, as campanhas não têm atingindo essa categoria profissional. A necessidade de um apoio institucional no enfrentamento dos maus-tratos infantis parece-nos urgente, já que a maioria dos fonoaudiólogos atua isoladamente em seus consultórios. Mesmo aqueles que trabalham em instituições, muitas vezes não conseguem realizar uma condução adequada desses casos porque não existe uma rotina institucional de atendimento que compartilhe responsabilidades e ofereça um suporte para que o profissional não tenha que arcar com todas as pressões sozinho. A parceria com entidades de classe e sociedades cientificas, que são muitas vezes a única referência para o fonoaudiólogo, pode ser uma estratégia viável para o processo de conscientização e sensibilização deste profissional diante deste complexo problema. Espera-se que este tema ocupe um espaço cada vez maior na pauta de debates da Fonoaudiologia, repercutindo na formação acadêmica de novos profissionais, na mobilização de entidades de classe em torno dessa questão, na articulação com setores responsáveis pelo problema dos maus-tratos, na continuidade e abertura de novas linhas de pesquisa sobre o tema e na inserção do fonoaudiólogo na rede de proteção à infância. Referências bibliográficas ASSIS, S.G. & CONSTANTINO, P. Violência contra crianças e adolescentes: o grande investimento da comunidade acadêmica na década de 90 pp. 163-198. In: Minayo, MCS.; Souza, ER. Violência sob o olhar da saúde. A infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz. 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Série Cadernos de Atenção Básica n.8, Brasília. 2001. EIGSTI, I.M. & CICCHETTI, D. The impact of child maltreatment on expressive syntax at 60 months. Devlopmental Science, 2004, 7:1 pp 88-102. NOGUCHI, M.S. O Dito, o não-dito e o mal-dito: o fonoaudiólogo diante da violência familiar contra crianças e adolescentes. Tese de doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2005. NOGUCHI, M.S. & ASSIS, S.G. 2003. Fonoaudiologia e violência intrafamiliar contra crianças: identificação de casos e prevenção. Pró-fono: revista de atualização científica, vol.15, no. 2 . SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE DO RIO DE JANEIRO. 2004. Dados Epidemiológicos – Notificação de Maus-tratos contra a criança e o adolescente. 12 April 2004. http://www.saude.rj.gov.br SULLIVAN, P.M.; BROOKHOUSER, P.; SCANLAN, L.; KNUTSON, J.F. & SCHULTE, L.M. Patterns of physical and sexual abuse of communicatively handicapped children. Ann Otol Rhinol Laryngol, 1991. mar100 (3), pp188-194.
 
Contato: milica.noguchi@gmail.com
 

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