DISCUSSÃO DE CASO: VOZ CANTADA
Elisabeth Amin
Comentador(a) de Caso
Instituição: CORALUSP-CEFAC
 
Ao ministrar cursos para fonoaudiólogos, observo que, ao mesmo tempo em que existe um fascínio pelo atendimento de cantores, existe também muito medo e insegurança. O que sempre tento deixar claro é que o cantor em fonoterapia tem a mesma expectativa que têm outros pacientes da clínica de voz e outras: melhorar sua qualidade de vida, alterada em função das dificuldades relacionadas ao uso da voz. Quer, como tantos outros pacientes, ser efetivo ao usá-la, “dar o seu recado”. Olhando sob este aspecto, o fonoaudiólogo especialista em voz pode e deve responder a estas expectativas. Porém, algumas particularidades desta classe de voz profissional, fazem com que o seu universo, para ser entendido e também abordado de forma efetiva, desde a entrevista até a alta, devam ser estudados e conhecidos mais de perto pelo fonoaudiólogo. Discutiremos a seguir alguns deles. Além de diferenças específicas,devemos ter em mente que aspectos psico-sociais ligados às atividades de um operador de telemarketing ou de um professor de ensino fundamental diferem muito daqueles vivenciados pelos cantores. Mesmo entre os cantores estes aspectos são fundamentalmente diferentes dependendo do estágio da carreira em que se encontram. É claro que um cantor em início de carreira tem estresses diferentes daqueles já consagrados. Os fãs de artistas consagrados muitas vezes não percebem ou não se importam com a alteração vocal de um ídolo, não o julgam e nem deixam de ir ao seu show. Sob alguns aspectos a pressão, da terapia de um cantor consagrado é maior no terapeuta do que no paciente. O que deixa um cantor inseguro não é necessariamente o que aflige um professor disfônico. O que deixa um cantor lírico inseguro não necessariamente é o que deixa um cantor popular inseguro. Dentro da categoria a qual chamamos de “Voz Cantada” existem cantos tão distintos quanto o de um “puxador de escola de samba” e o de um cantor de ópera, ambos buscam soluções para que possam ter sucesso nas suas respectivas formas de cantar. O levantamento de questões e a observação de aspectos específicos no momento da anamnese, vão nortear e auxiliar a fonoterapia aproximando-a das expectativas do paciente. Qual a realidade de cada cantor? Qual a formação musical e vocal? O que é exigido do cantor no universo ao qual pertence? Quais as características musicais de cada estilo de canto? Como é a configuração laríngea de cada estilo? Como são os ensaios? E os locais onde se apresentam? Qual a formação da banda/e ou acompanhamento? O cantor conhece o potencial e as limitações de sua voz? Conhece sua tessitura? Tem problemas na “passagem”? Como usa os registros? Faz “cover”? Como faz para escolher as tonalidades das músicas que canta? Qual a sua expectativa em relação a sua carreira? Para o que canta, está usando corretamente corpo e voz? Como é sua alimentação? Sono? Vida diária? Estas e várias outras questões irão surgindo quanto mais imersos estivermos neste universo. É importante portanto, que o fonoaudiólogo tenha um conhecimento mesmo que superficial das especificidades e demandas de cada estilo de canto, para tornar a fonoterapia muito mais fluente, com muito mais “linguagem em comum” entre terapeuta e paciente aumentando sobremaneira as possibilidades de ser efetiva. Por exemplo, um cantor de Rock\'n Roll com refluxo laringo-faringe pode ser efetivo no seu canto, mesmo tendo sintomas e sinais. O cantor lírico não, uma vez que sua voz deve ser sempre cristalina e com ataque vocal limpo e a tempo. O cantor de Rock com certeza quer se ver livre dos sintomas (que podem ser de desconforto, ardor, queimação, etc.), mas pode gostar dos sinais, como o da qualidade mais “suja” que o refluxo imprime em sua voz. O cantor lírico, por sua vez, quer se livrar dos sintomas de desconforto e outros, mas sua expectativa maior está sempre no retorno da qualidade vocal, o mais rápido possível. Aspectos técnicos do trabalho de um cantor popular são também responsáveis pela efetividade de seu canto e pela garantia de um canto sem esforço. Equipamentos e técnicos de som, qualidade da aparelhagem e dos locais de apresentação podem favorecer ou impedir um bom trabalho. É claro que, pelo menos teoricamente, um cantor consagrado terá menos problemas técnicos do que um iniciante, que sob este aspecto corre mais riscos de alterações vocais. Os cantores líricos por sua vez e principalmente no Brasil vivem uma realidade também difícil. Poderia se pensar que por cantarem “com técnica” estariam menos sujeitos a alterações vocais. Porém, porque o mercado oferece poucas e escassas oportunidades para solistas, a maioria destes cantores se engaja em atividades nos coros profissionais, que são um meio de subsistência dentro da música. Nestes coros, estes cantores ensaiam várias horas por dia, o repertório é eclético (e muitas vezes não vai de encontro ao gosto do cantor), a programação muda com freqüência, impedindo uma intimidade com o repertório, o número de apresentações é grande. As vozes femininas encontram maior competição nas provas de ingresso. O maior número de candidatos por vaga geralmente é para sopranos, que é a classificação vocal mais comum entre as mulheres, fazendo com que muitas prestem exame para o naipe de mezzo-soprano (ou contralto), cantando portanto em região vocal não favorável. Mesmo as que ingressam no naipe de sopranos, invariavelmente ficam sob estresse vocal, pois apesar de serem sopranos, em determinados repertórios que exploram a região hiper aguda da voz e muita agilidade, acabam sofrendo e desenvolvendo sintomas vocais. Inúmeros exemplos poderiam ser citados como o dos cantores dos musicais, os religiosos ou o de corais amadores, cada qual com seu aspecto vocal e psico-social específico, e portanto demandando atenção diferente por parte do fonoaudiólogo. De qualquer forma, as estratégias de atendimento clínico estarão sempre condicionadas ao cantor e ao tipo de atividade que exerce. Métodos, técnicas ou exercícios só serão efetivos se forem “customizados”. O mesmo critério deve ser utilizado com o aquecimento e desaquecimento vocal. A fonoterapia deve promover a melhora dos sintomas, da qualidade vocal, da segurança do cantor, mas acima de tudo, favorecer o desenvolvimento artístico do paciente, uma vez que canto é acima de tudo arte. O trabalho com voz profissional é tão desafiador e interessante, que nos obriga a mergulhar em questões e em universos muito distintos, para que possamos decifrar alguns de seus muitos “enigmas” e ajudar nossos pacientes a retomarem suas atividades o quanto antes e se possível, melhores do que nunca!
 
Contato: bamin@usp.br
 

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