Código: PDL1045
A RELAÇÃO LINGUAGEM-COGNIÇÃO NO TRABALHO COM COMUNICAÇÃO SUPLEMENTAR E/OU ALTERNATIVA COM A CRIANÇA COM PARALISIA CEREBRAL |
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Autores: Sandra Cristina Fonseca Pires, Suelly Cecília Olivan Limongi |
Instituição: FACULDADE DE MEDICINA DA USP |
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Introdução
A Paralisia Cerebral (PC) é uma alteração sensório-motora caracterizada por lesão encefálica não-progressiva do SNC ainda imaturo, de etiologia e manifestações variáveis. Crianças com PC apresentam comprometimento global do desenvolvimento sensório-motor, afetando controle postural estático e dinâmico (AICARDI e BAX, 1992; DIAMENT, 1996). Embora a PC possa manifestar alterações de maior importância de ordem motora ou mental, ambos os aspectos sempre se encontram com um certo grau de comprometimento (NETTER e BRESNAN, 1992).
Segundo LIMONGI (1992, 1998), as alterações na comunicação oral variam desde a ausência de atitude comunicativa, distúrbios de linguagem, a alterações da articulação. CHUN (1991) relaciona os seguintes quadros dentro dos distúrbios comunicativos na PC: retardos de linguagem, distúrbios articulatórios, distúrbios da voz e dificuldades no aprendizado da leitura e escrita. A autora atribui às alterações de linguagem a interferência de fatores como déficits cognitivos, distúrbios auditivos, distúrbios perceptuais, aspectos psico-sociais e envolvimento dos centros da linguagem no sistema nervoso central. Aos distúrbios articulatórios, destaca fatores como alterações das funções neurovegetativas, da retroalimentação tátil-cinestésica e acústica, do comprometimento neuromuscular dos órgãos fonoarticulatórios e das alterações morfológicas destes. Os distúrbios da voz decorrem de alterações da musculatura oro-motora. E as dificuldades no aprendizado da leitura e escrita ocorrem por fatores como nível cognitivo, distúrbios sensoriais auditivos e distúrbios perceptuais auditivos, visuais e cinestésicos.
O comprometimento neuro-muscular e, com isso, do desenvolvimento sensório-motor das crianças com PC, interferem no desenvolvimento cognitivo e de linguagem, considerando os princípios propostos pela Epistemologia Genética (PIAGET, 1976).
A criança aprende por meio de sensações, de experiências, usando e modificando padrões motores pela prática, repetição e adaptação (BOBATH, 1984). A criança com PC utiliza e repete padrões anormais que constituirão novos padrões compensatórios anormais e, dessa forma, não passa por experimentações sensório-motoras que uma criança sem alterações vivencia logo no início da vida. São essas experiências que lhe fornecem a base para tarefas mais complexas, que contribuirão para o seu amadurecimento e desenvolvimento.
O processo de construção de linguagem e de desenvolvimento cognitivo se dão inicialmente pela atuação sensório-motora. Através da experiência sensório-motora no seu primeiro estágio de desenvolvimento, a criança vai aprimorando suas estruturas mentais, realizando novas aquisições, num progresso no sentido da aquisição da função semiótica (PIAGET e INHELDER, 1976 orig.1966; RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988). Esta função corresponde à condição de representação, ou seja, de diferenciação de significante e significado. Segundo SINCLAIR et al. (1989), com a função semiótica tem-se a condição de construção e uso de símbolos pessoais e internos (imagens mentais), ou de símbolos que podem ser partilhados (gestos, objetos e brinquedos), ou um sistema de símbolos convencionais – linguagem.
Ao final do período Sensório-Motor observam-se as primeiras condutas operacionais (LIMONGI, 1992) e, a partir daí, diversas outras aquisições importantes para o processo de construção de linguagem serão desenvolvidas, como seriação e classificação. Estas aquisições contribuem no desenvolvimento das operações lógicas, na formação para compreensão de classes e relações, operações matemáticas, ações temporais e físicas, fundamentais para o desenvolvimento das estruturas mentais e do raciocínio (PIAGET, 1964).
Verifica-se, portanto, a forte relação das alterações de desenvolvimento sensório-motor global na PC com o desenvolvimento cognitivo e de linguagem, despertando gradativamente interesses de estudos se preocupando com a linguagem e sua aquisição na criança com PC (LIMONGI, 1992, 1998; FRAZÃO, 1996). Antes disso, os estudos sobre PC voltavam-se para os aspectos sensório-motores envolvendo o sistema estomatognático, com atenção às disfagias e adequações fono-articulatórias, favorecendo melhor controle respiratório e motor-oral. A preocupação com a linguagem resumia-se à atenção à linguagem oral, quanto à produção.
Paralela a essa preocupação com a linguagem nas crianças com PC, desenvolveram-se estudos referentes à comunicação e à importância de promover recursos auxiliares ou alternativos, nos casos de grande dificuldade de desenvolvimento de linguagem expressiva, correspondendo aos primeiros estudos brasileiros na área de Comunicação Suplementar e/ou Alternativa (CSA) (CHUN, 1991; GILL, 1997; MOREIRA e CHUN, 1997; CAPOVILLA et al., 1998; FERNANDES, 1999). Mais recentemente, já se tem estudos que se remetem à CSA sob uma perspectiva de construção de linguagem (VASCONCELLOS, 1999; WOLFF, 2001; PANHAN, 2001). Visto que a CSA é uma área recente, desenvolveu-se o presente estudo com objetivo de correlacionar a CSA e o processo de construção de linguagem com crianças com PC.
Método
A casuística selecionada foi de 9 crianças com PC, sem restrições quanto à classificação, faixa etária de 4-10 anos de idade. Os critérios de exclusão foram: linguagem oral efetiva; síndrome associada; alterações sensoriais graves.
A coleta foi realizada em cinco ambientes diferentes. Como material, utilizou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; protocolo de Avaliação Cognitiva e de Linguagem adotado no LIFSASM do Curso de Fonoaudiologia da FMUSP, cuja base está no modelo proposto por Piaget (LIMONGI et al., 2000); filmadora para registro das avaliações; e questionário para pais elaborado para levantamento de dados sobre o uso de CSA.
As provas que constituem a avaliação de linguagem e cognição são de jogo simbólico com material figurativo e não-figurativo, seriação, classificação, correspondência termo-a-termo, construção e ordenação de figuras. O protocolo original inclui provas de elaboração oral, que foram descartadas frente ao perfil de comunicação das crianças do estudo.
Para fins de análise, foi estabelecida uma pontuação para algumas noções avaliadas a partir das provas aplicadas: igual-diferente, imitação diferida, conteúdo-continente, classificação, seriação, correspondência termo-a-termo e antecipação.
A partir da pontuação estabelecida acima, o valor mínimo possível é 7, o qual caracteriza uma criança no estágio sensório-motor. Considerando a necessidade da presença das três noções iniciais para indicar a transição para o pré-operatório, a pontuação mínima neste estágio é 16. A partir deste valor, tem-se uma variação possível de evolução no estágio pré-operatório, sendo a pontuação máxima 28.
Os procedimentos realizados foram: encaminhamento do projeto para a comissão de ética da instituição (CAPPesq 112/02); seleção das crianças na instituição de vínculo e nas demais que autorizaram a realização da pesquisa; entrega dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido aos responsáveis; e então realização das avaliações. Seguida à avaliação, os pais das crianças com indicação para casa da prancha de CSA foram convocados para o questionário.
Das nove crianças, seis delas tiveram indicação de uso de CSA, mas só três demonstraram uso eficiente de seus sistemas. E apenas uma tinha indicação de uso em casa.
Resultados
A partir dos dados obtidos na avaliação cognitiva e de linguagem, teve-se condições de localizar quais crianças se encontravam no período pré-operatório e comparar seu desempenho com o uso da CSA. Apenas três crianças apresentaram pontuação elevada, sugerindo melhor desempenho, o que nos permite localizá-las no período pré-operatório. Duas outras crianças apresentaram desempenho intermediário, classificadas em processo de transição para o período pré-operatório. As demais tiveram desempenho muito baixo, encontrando-se no sensório-motor.
Estes resultados, comparados os dados de indicação e uso de prancha de CSA, mostraram que as crianças com melhor desempenho na avaliação cognitiva e de linguagem tiveram tanto indicação de uso de CSA, como também apresentaram uso eficiente.
As crianças com desempenho intermediário apresentaram indicação de CSA, mas sem uso eficiente. As demais, que tiveram pontuação baixa, não tiveram indicação de CSA, exceto uma, mas que não demonstrou uso efetivo apesar da indicação.
Quanto ao questionário, apenas uma criança teve indicação de uso da prancha de CSA em casa. Os dados sugerem dificuldade dos familiares em efetivar o uso da CSA.
Discussão
Verificou-se que referente ao tempo de terapia, este não foi determinante para o uso da CSA. O tempo prolongado de exposição à prancha de CSA não determinou o uso eficiente. Os dados sugerem que, mais importante que o tempo, é o estágio de desenvolvimento cognitivo e de linguagem da criança. A criança precisa ter um raciocínio de nível pré-operatório, para estar apta a usar CSA.
Os dados destacam a importância de se considerar o estágio de desenvolvimento cognitivo e de linguagem em que se localizam as crianças que apresentam déficit severo de comunicação e sejam candidatas para uso de CSA.
Estes resultados estão de acordo com as considerações de ROMSKI e SEVCIK (1993), quanto à necessidade de considerar a compreensão de linguagem na avaliação da aquisição e uso de CSA. Deve-se considerar tanto a possibilidade de expressão como de compreensão de linguagem, para se propôr uma intervenção apropriada às necessidades e condições dos usuários.
Verifica-se, portanto, a importância da realização de uma avaliação de linguagem e cognição criteriosa para indicação do uso de CSA, determinação de quando iniciar este trabalho e a sua forma de desenvolvimento (tipo de material, forma de apresentação, vocabulário inicial).
Conclusão
Concluiu-se que há pré-requisitos a serem considerados para definir se há condições de iniciar a intervenção com a CSA, assim como para selecionar o sistema, adaptações e recursos de facilitação a serem utilizados. Esses pré-requisitos são referentes ao processo de desenvolvimento cognitivo e de linguagem, sendo necessário que o indivíduo esteja, pelo menos, em transição para o período pré-operatório, o que lhe dará condições de iniciar o uso de símbolos. |
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Referências
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