DISFAGIA E DISARTROFONIA |
Zuleica Camargo
Apresentador(a) de Caso |
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A integração e a coordenação implicadas nos atos diários de deglutição, respiração e fonação estão presentes na realidade do fonoaudiólogo, especialmente no atendimento da demanda de distúrbios das mais variadas naturezas e de diferenciados graus de manifestação, envolvendo a interface das funções desempenhadas pelo complexo anátomo-funcional da cabeça e do pescoço 1-4.
Ocupar-se da importante inter-relação de funções tornou-se uma necessidade aos especialistas em Motricidade Orofacial (incluindo-se as particularidades da área da disfagia) e em Voz nas mais variadas faixas etárias e nos mais diversos quadros clínicos.
Na busca por um atendimento mais amplo à demanda, o fonoaudiólogo passou a incorporar o aprofundamento das questões relativas à realidade anátomo-funcional subjacente aos mecanismos da deglutição e da fonação e a incentivar membros da equipe de reabilitação a valorizar tal relação. Dessa maneira, passou a ser foco de seu interesse os refinados aspectos do comportamento diferenciado das estruturas (as mesmas) para finalidades diversas, nesta apresentação representadas pelas funções de deglutição e de fonação, sem entretanto ser possível desconsiderar as influências da dinâmica respiratória nos processos referidos .
Gradativamente, foi possível registrar o avanço na incorporação de mecanismos de avaliação dos refinamentos da função vocal no caso de disfagia, especialmente aquelas de base neurogênica 5-7. Neste universo, ganhou destaque a descrição da voz molhada, “borbulhante”, úmida, a qual intrigava pelo fato de revelar, num evento sonoro, uma mudança importante de atividade das estruturas das vias aerodigestivas superiores e, especialmente, um perigo eminente: a possibilidade de penetração das vias aéreas. Os roteiros de avaliação destacavam a necessidade de avaliação cuidadosa da variação da qualidade do sinal vocal em função da deglutição e ,gradativamente a observação estendeu-se a variações na consistência e na quantidade do bolo alimentar oferecido.
Diante do avanço de meios instrumentais que passaram a complementar o arsenal clínico voltado a desvendar as detalhadas bases anátomo-fisiológicas das funções vitais (respiração e deglutição) e adaptada (fonação), começa a ser delineado um panorama em que a atuação diferenciada das estruturas para ações diversas passa a ser valorizada. Inaugura-se uma fase importante no sentido de se particularizar as ações e de se graduar os níveis de alteração para as variadas atividades. Tal nível de diferenciação permitiu o olhar mais atento às inter-relações e implicações de sintomas “vocais” e de “deglutição” em quadros de base neurogênica 1,8-9. Tais avanços no panorama nacional de pesquisas científicas apontam uma tendência de busca de correlatos vocais na vigência de sinais e sintomas de disfagia, como forma de detalhar eventos não passíveis de monitoramento (mecanismos da deglutição) por meio de alguns indicativos de qualidade e função vocal. Neste sentido, a avaliação perceptivo-auditiva volta a ganhar força na avaliação clínica, especialmente pela possibilidade de sinalização de mudanças importantes e até certo ponto “alarmantes”, como é o caso da presença de resíduos de bolo alimentar e secreções nas vias aerodigestivas superiores.
Pode-se então esboçar um panorama em que, na virada do século, ou mais precisamente, do milênio, estudos enfocando a relação entre sintomas e sinais de disfagia e de disfonia passaram a se fazer presentes na literatura científica. Tais estudos sinalizam a busca por mecanismos envolvendo especialmente a região glótica, muito enfocada inicialmente em todas as propostas envolvendo a avaliação clínica de voz. A voz úmida ou molhada era tida como sinônimo de aspiração e de falha de mecanismos glóticos. Gradativamente, tais indicativos passaram a apontar que a voz úmida carregava correlatos fisiológicos de presença de resíduos ao longo das vias aerodigestivas superiores e não exclusivamente nas imediações das pregas vocais.
Tais resultados passaram a valorizar a importância da análise detalhada do sinal vocal, tanto por meios perceptivo-auditivos, como pela complementação por métodos instrumentais, neste particular, pela análise acústica do sinal vocal, ou mais precisamente do sinal de fala 1,8-9. Esta reflexão também remete o leitor à própria evolução da terminologia voltada à caracterização das alterações vocais nos quadros de base neurológica. O histórico da evolução da terminologia revela a incorporação de aspectos dos mecanismos fonatórios, aliados aos mecanismos articulatórios, culminando com a terminologia de disartrofonia 2.
Diante da definição de disartrofonia e da associação dos mecanismos fonatórios aos articulatórios e ressonantais, cabe retomar os princípios acústicos da produção do sinal vocal 10, em que os eventos glóticos e supraglóticos desempenham importante papel na constituição da característica final da qualidade da emissão sonora.
Voltando à importante integração da respiração, da deglutição e da respiração e da atuação altamente refinada no tempo de estruturas que mudam de função em milésimos de segundos, recorda-se que tais funções têm atuação em geração de forças ingressivas (inspiração e deglutição) e egressivas (expiração e fonação, associadas entre si). Sendo assim, estudar ou, mais precisamente, enfocar (clinica ou cientificamente) a integração de tais funções é aferir, em refinados intervalos de tempo, a ação das estruturas glóticas e supraglóticas em mecanismos ingressivos e egressivos.
Do ponto de vista vocal, vale enfocar a geração de gradientes de pressão, os quais influenciarão a atividade das pregas vocais. Neste particular, destaca-se a função pulmonar, as alterações de vias aéreas inferiores e os recursos auxiliares de respiração, tais como a traqueostomia.
Na etapa seguinte, a atividade glótica é destacada enquanto mecanismo fonatório. As alterações neste plano ocasionarão importantes alterações no sinal vocal, com destaque para presença de ruídos (rouquidão, soprosidade e aspereza) e comprometimento dos mecanismos da fase faríngea da deglutição. Algumas propostas incluem a possibilidade de monitoramento por meio da percepção auditiva da qualidade vocal e de medidas acústicas, tais como freqüência fundamental, medidas de perturbação e de ruído 1,8-9. Neste universo, também começam a figurar estudos com técnicas auxiliares para investigação refinada da atividade de pregas vocais no tempo e de forma não invasiva, tal como a eletroglotografia (EGG) 11. Tais possibilidades permitem o monitoramento inclusive das diversas situações envolvendo alimentação, penetração/aspiração e limpeza da via aérea.
No plano de atividade supraglótica destaca-se a importância de estase de resíduos de bolo alimentar e demais substâncias, de forma a realçar a importância dos mecanismos de preensão, preparo e propulsão do bolo alimentar no plano da deglutição. Do ponto de vista fonatório destacam-se os componentes de articulação e de ressonância. Neste plano ressalta-se a influência dos mecanismos de ação de língua, lábios, mandíbula, esfíncter velofaríngeo, paredes de faringe e região supraglótica da laringe. Ouytronelemnto que ganha destaque é a saliva, sua produção reduzida em casos de xerostomiae/ou dificuldades em degluti-la. Medidas acústicas propostas para este plano envolveram a freqüência dos formantes das vogais 8-9.
Alguns estudos inclusive revelaram a relação complexa entre os mecanismos glóticos e supraglóticos por meio da investigação do tempo de início de sonorização (VOT), medida acústica que prioriza a sincronização de mecanismos glóticos (fonatórios) e supraglóticos (articulatórios) 8-9,12. Tal índice apresenta importante relação inclusive com a própria definição de disartrofonia. A vantagem de tal fator é justamente poder refletir variações em pequenos e importantes intervalos de tempo e, no futuro, caracterizar algum meio de monitoramento de funções na região da cabeça e do pescoço.
Retomando o aspecto que funcionou como incentivo ao aprofundamento da relação entre disafgia e disartrofonia, estudo recente apresenta uma detalhada descrição de possíveis mecanismos relacionados à voz úmida/molhada, com base na discussão de correlatos perceptivo-auditivos, acústicos e fisiológicos 9.
Este breve relato encerra-se com a perspectiva de que a fonoaudiologia colaborou e ainda pode colaborar de forma substancial para a compreensão, a avaliação e a reabilitação/gerenciamento de alterações que envolvem aspectos complexos da respiração e da alimentação, na interface com a produção de fala.
Referências
1. Carrara-de-Angelis E. Deglutição, configuração laríngea, análise clínica e acústica computadorizada da voz de pacientes com doença de Parkinson [doutorado]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2000.
2. Carrara-de-Angelis E. Disartrofonias avaliação dos componentes funcionais do mecanismo de produção fonoarticulatória In: Dedivits RA, Barros, APB. Métodos de avaliação e diagnóstico de laringe e voz. São Paulo: Lovise; 2002.p 145-175.
3. Cervantes O. Doenças neurológicas (repercussões laríngeas e vocais) In: Dedivits RA, Barros, APB. Métodos de avaliação e diagnóstico de laringe e voz. São Paulo:Lovise; 2002.p 145-175.
4. Mourão LF.Reabilitação fonoaudiológica das paralisias laríngeas In: Carrara-de-Angelis E, Furia CLB, Mourão LF, Kowalski LP. A atuação fonoaudiológica no câncer de cabeça e pescoço. São Paulo: Lovise; 2000.p 201-207.
5. Furkim AM, Carrara-de-Angelis E. Organização de um departamento de reabilitação de voz, fala e deglutição In: Carrara-de-Angelis E, Furia CLB, Mourão LF, Kowalski LP. A atuação fonoaudiológica no câncer de cabeça e pescoço. São Paulo: Lovise; 2000.p 141-147.
6. Ziegler W, Hoole P. Neurologic disease In: Kent RD, Ball MJ. Voice quality measurement. San Diego: Singular Publishing Group; 2000.p 397-410.
7. Hirano M, Mori K. Vocal fold paralysis In: Kent RD, Ball MJ. Voice quality measurement. San Diego: Singular Publishing Group; 2000.p 385-395.
8. Carrijo de Andrade LG, Camargo ZA. Estudo preliminar da relação entre qualidade vocal e disfagia: uma abordagem acústica In: Jacobi, Levy, Correa da Silva. Disfagia - avaliação e tratamento. São Paulo: Revinter; 2003. p. 345-364.
9. Carrijo de Andrade LG. Estudo da correlação entre qualidade vocal e disfagia pós-acidente vascular cerebral:aspectos acústicos, fisiológicos e perceptivos [mestrado]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2004.
10. Johnson K. Acoustic and auditory phonetics. 2.ed. Malden:Blackwell, 2003.
11. Camargo Z. Avaliação acústica e aerodinâmica da laringe In: Campos CAH, Costa HOO. Tratado de otorrinolaringologia. São Paulo: Roca; 2003.p 814-823.
12. Ryalls J, Gustafson K, Santini C. Preliminary investigation of voice onset time production in persons with dysphagia. Dysphagia 1999; 14(3):169-75. |
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