Introdução
Este trabalho parte de uma relação presumida mas até o momento não
comprovada entre recepção e expressão de fala. O teste SSW1
foi o escolhido para ser o foco desse estudo devido às suas características
estruturais e lingüísticas que resultam em uma tarefa complexa para
o sistema auditivo e por seu papel no diagnóstico das desordens de
processamento auditivo (DPAs).
O reconhecimento da fala envolve uma complexa seqüência de processamento
serial e paralelo de informações no sistema nervoso central (SNC)2;
que é inicialmente acústico e posteriormente de linguagem e cognitivo3,4
envolvendo memória.
A área de pesquisa e conhecimento denominada neurociência cognitiva
surge nesse contexto buscando a compreensão das bases das representações
cerebrais de objetos e acontecimentos externos e resvala nos mecanismos
de representação da linguagem. A neurociência utiliza o comportamento
observado para explicar como nosso cérebro trabalha com as informações
que recebe e como essas informações afetam o comportamento, ou seja,
os efeitos do aprendizado. Os processos neurais relacionados ao aprendizado
de uma maneira geral são regidos por princípios de plasticidade cortical
5,6. A neurociência procura avidamente elucidar o que os
fonoaudiólogos empiricamente demonstram.
Objetivos
1. Realizar um inventário das características demográficas dos indivíduos
que realizaram o Teste Dicótico de Dissílabos Alternados – SSW em
português no período de 1994 a 2001;
2. Estudar quantitativa e qualitativamente as respostas desses indívíduos
aos pares dicóticos selecionados do teste supra citado, e
3. Possíveis explicações para o fato de determinados estímulos apresentarem
um maior incidência de respostas incorretas.
Métodos
Realizou-se um inventário quantitativo e qualitativo de uma amostra
de 722 sujeitos, reunidos em grupos formados por faixa etária (Grupo
I, Grupo II, Grupo III, Grupo IV e Grupo V), Grupo Normal, independentemente
da idade, e Grupo Total de acordo com as seguintes variáveis: gênero,
idade, nível de escolaridade, repetência, dificuldade de fala, de
escrita, de leitura, otites, fonoterapia, distúrbio neurológico, tipo
e grau da DPA. Realizou-se a descrição de cada grupo e determinou-se
correlações estatísticas. Aplicaram-se técnicas de análise multivariada,
que tiveram por objetivo indicar quais os fatores mais significantes
para explicar a variância observada para cada grupo.
Resultados
A análise demográfica revelou que 65,0% da amostra foi composta por
sujeitos do sexo masculino, 62,9% nas séries iniciais do ensino fundamental,
relatando dificuldades de fala, escrita e leitura. A maioria deles
não relatou ter freqüentado sessões de fonoterapia ou episódios de
otite, nem apresentar distúrbios neurológicos. Apresentaram, ainda,
desordem de processamento auditivo do tipo decodificação , com classificação
quanto ao grau de dificuldade de compreensão da fala.
O estudo das respostas linguísticas dos pares dicóticos, indicou um
maior número de erros para a condição EC no teste SSW em português.
O número de acertos foi freqüentemente maior que o de erros nos itens
dicóticos do teste SSW. Alguns erros ocorreram de maneira repetida
e os erros anotados de três itens do teste foram analisados quanto
às possíveis estratégias utilizadas pelos sujeitos. Algumas RLII ocorreram
de maneira repetida e aquelas dos itens 2G, 6G e 22G foram analisadas
quanto às possíveis estratégias utilizadas pelos sujeitos7-11.
Comentários
As correlações significativas, positivas e negativas, obtidas para
a amostra estudada corroboraram com a literatura quanto à importância
das habilidades de consciência fonológica para o aprendizado da leitura
e da escrita e também como fator potencialmente preventivo de DPA12-18
. Ainda, indicaram o papel fundamental que a maturação neurológica
tem na execução de tarefas de escuta dicótica 19-25.
O dendograma mostra os conglomerados de variáveis formados com um
mínimo de 50% de semelhança, ou seja, as variáveis que se referiam
a processos semelhantes em no mínimo 50% foram reunidos em um mesmo
conglomerado. Cinco conglomerados foram formados com as variáveis
desse estudo e as as relações existentes entre elas foram quantificadas.
Ao evidenciar as semelhanças entre as diversas variáveis, esse procedimento
revela também as diferenças entre elas, acarretando uma mudança de
perspectiva que deve ser sondada quanto às possibilidades de explicar
os possíveis mecanismos e estratégias que cada variável representa.
A análise fatorial das variáveis oferece os primeiros resultados desse
tipo obtidos na fonoaudiologia. Para a amostra estudada, os fatores
constituídos para os diversos grupos revelaram alguns pontos interessantes.
Os primeiros e os segundo fatores foram constituídos, em sua maioria,
pelas mesmas variáveis: decodificação, grau, dificuldade de fala,
dificuldade de leitura, dificuldade de escrita, combinadas ou não
entre si ou com alguma outra variável. Essa constância na seqüência
de constituição dos fatores para os grupos de diferentes faixas etárias
resulta da própria amostra: sujeitos com dificuldades e encaminhados
para um diagnóstico. A constituição de um terceiro fator em alguns
grupos, foi sempre constituído de uma única variável, gênero, também
pode ser analisado sob esta ótica uma vez que a maioria da amostra
foi de homens.
Retoma-se o conceito apresentado por Shepherd 26 do aprender,
que é uma mudança adaptativa no comportamento, causada pela experiência.
Dessa forma, fica claro que aprender não pode ser restrito a um único
sistema mas envolve todo o organismo. Estudos já demonstraram o efeito
do aprendizado na estrutura cerebral 4,27,28. Altamente
relacionada ao aprender está a memória. A memória enquanto armazenamento
e acesso às experiências anteriores é o mecanismo pelo qual uma experiência
é incorporada ao organismo de modo que possa, posteriormente, acarretar
mudanças adaptativas no comportamento. Da mesma forma que existem
vários tipos de aprender, existem também vários tipos de memória.
Pode-se dizer que existem dois tipos básicos de memória. Um, geralmente
conhecido como memória de longa duração, engloba os mecanismos que
operam por um período que varia de minutos a anos e estão envolvidos
no armazenamento responsável pela construção do conhecimento, habilidades,
modo de vida e comportamento. O segundo, conhecido como memória de
trabalho, engloba os mecanismos que operam por breves períodos de
poucos segundos e são os responsáveis, por exemplo, pela manutenção
de informações recebidas durante uma conversação e que organizam a
resposta a ser dada. Acredita-se que a memória de trabalho esteja
intimamente relacionada com a linguagem 26,29-31.
A percepção da linguagem, seja ela na forma gráfica ou verbal, requer
que o indivíduo seja capaz de manter um número suficiente de elementos
na ordem de chegada o tempo suficiente para permitir a compreensão
da mensagem. Partindo-se do princípio de que são as habilidades de
consciência fonológica que permitem que os aspectos acústico-fonéticos
da fala sejam armazenados e acessados, os resultados obtidos nesse
estudo revelam a importância dessas habilidades para um aprendizado
da leitura e escrita sem contratempos, conforme proposto 18.
Sob essa perspectiva, o papel do gênero deve ser cuidadosamente repensado
pois torna-se bastante relevante uma vez que estudos recentes têm
demonstrado que o gênero determina, desde muito cedo, uma diferença
estrutural no cérebro provavelmente decorrente da ação hormonal32
que possivelmente o moldam de modo distinto para cada um dos gêneros
que leva os indivíduos de cada gênero a processar informações cognitivas
de modo distinto33. Novas descobertas que indiquem como
cada um dos gêneros processa informações auditivas em diferentes situações
podem ser bastante úteis para tornar a terapia fonoaudiológica mais
eficiente.
A ocorrência de erros nos estímulos dicóticos do teste SSW é esperada
porém, a possibilidade de estudá-los qualitativamente promoverá uma
mudança de postura: os erros passarão a ser usados como pistas sobre
as estratégias que cada indivíduo utiliza ou deixa de utilizar, de
modo que a terapia fonoaudiológica possa incorporar aquelas necessárias
para que o repertório de estratégias disponíveis para cada indivíduo
seja ampliado. Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que
os procedimentos de registro das respostas sejam bastante rígidos
e que o erro passe a ser consistentemente anotado.
A perspectiva da neurociência e as bases da plasticidade neural apontam
para uma clínica fonoaudiológica bastante diversa da tradicionalmente
observada. Essa nova perspectiva 5-34 propõem que a clínica
fonoaudiológica seja vista como o processo que acarreta uma alteração
morfológica (modificação do campo receptivo) que é observada na melhora
da dificuldade apresentada com a modificação, portanto, do comportamento
(aprendizado).
Delineando pesquisas direcionadas para esclarecer os vários pontos
nos quais a fonoaudiologia e a neurociência caminham lado a lado,
ou talvez, se interceptem, o objetivo deve ser o de compreender as
peculiaridades (conseqüência de fatores lingüísticos) e as similaridades
(conseqüência da estrutura e funcionamento cerebral) que se fazem
presentes a cada dia na clínica fonoaudiológica.
Conclusões
As características demográficas da amostra indicaram que a maioria
dos sujeitos era do gênero masculino, freqüentando o ensino fundamental,
que não referiu repetência, mas dificuldades de fala, escrita e/ou
leitura. O relato de procura por tratamento fonoterápico foi rara,
assim como de ocorrência de episódios de otite e distúrbios neurológicos.
O tipo de desordem de processamento auditivo mais freqüente foi o
de decodificação associado a uma classificação de grau de dificuldade
de compreensão da fala.
Ocorreu um maior número de erros para a condição EC no teste SSW em
português indicando que o hemisfério esquerdo concentra as estruturas
envolvidas na percepção das pistas acústicas da fala (freqüência,
intensidade, duração).
O número de acertos foi freqüentemente maior que o de erros nos itens
dicóticos do teste SSW. |
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