A ESCRITA TRANSTORNADA
Cristiane Cagnoto Mori Angelis
Palestrante
Instituição: PUCSP/ UMESP
 
“O anel que tu me destes era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que se amam. A cadeira me é um objeto. Inútil quando a olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho insipiente a loucura que em si mesma é criação válida”. Diante deste trecho, convoco uma reflexão: é possível afirmar que ele seja coeso? Coerente? E o que dizer do sujeito que escreve: Eu e Jagob, meu irmão gazula, gosdumávamos bazar a brimeira barde do verão em Gabe Gad gom minha mãe, e a última barde em Eazd Hambdon, gom meu pai. Mas naguele ano a gende voi bara o meu bai um bougo mais zedo gue o blanejado. Guando o dia naszeu, a gende levandou da gama no raiar do zol e dodo mundo se enviou no garro gom o nozo dio Desmond.? O primeiro fragmento apresenta, sob um certo ponto de vista, problemas de coesão e coerência. A progressão temática, por exemplo, entre “O anel que tu me destes era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que se amam” e “A cadeira me é um objeto” foi quebrada e, a rigor, não é possível estabelecer entre esses trechos nenhum elo que garanta a coerência. Da mesma maneira, se se considerar apenas o modo como os elementos organizam-se canonicamente no mundo real, não faz sentido perguntar que horas são, para se certificar de que se está vivendo. Nenhum de nós, no entanto, deve ter suposto como autor deste fragmento um sujeito com ‘transtornos de escrita”. Mesmo o segundo trecho, em que todos os grafemas correspondentes a fonemas surdos foram substituídos pelos grafemas que representam seus pares sonoros, não parece ter sido escrito por uma criança ou mesmo adolescente com dificuldades. Por quê? O que estes fragmentos têm que os diferencia dos textos dos pacientes da clínica fonoaudiológica, sobre os quais, freqüentemente, afirmamos terem problemas de coesão, coerência e (orto)grafia? Essa questão, na verdade, remete a outra, mais fulcral, que diz respeito aos critérios que determinam a definição de um “transtorno da escrita”, ou seja, àquilo que, como fonoaudiólogos temos considerado no processo diagnóstico daqueles sujeitos, cuja queixa relaciona-se à leitura e à escrita. Via de regra, este processo diagnóstico tem sido tautológico, na medida em que apenas re-edita e re-enuncia uma diagnóstico já determinado anteriormente pela instituição escolar. Assim, aos sujeitos encaminhados pela escola por conta de suas dificuldades para ler e escrever, oferecemos um diagnóstico de distúrbio de leitura e escrita, quando não de dislexia ou distúrbio da aprendizagem. Tais rótulos vêm acompanhados por uma descrição mais ou menos extensa de sintomas que facilmente são, para alívio do terapeuta, detectados no sujeito: desmotivação para ler; leitura silabada, com ritmo e velocidade alteradas e sem compreensão; textos curtos, sem criatividade, com vocabulário pobre, alterações de coesão e coerência e problemas (orto)gráficos, quase sempre, incluindo trocas de surda/sonora. O elenco de sintomas permite ao terapeuta não somente confirmar sua hipótese diagnóstica, mas também planejar o processo terapêutico, o qual, com algumas diferenças superficiais, presta-se à extinção dos sintomas, no caso, dos erros. Essa postura vai ao encontro dos objetivos da escola que, de fato, espera que a clínica fonoaudiológica acolha este sujeito e possa torná-lo apto a ler e escrever normalmente, ou seja, tal qual a média. Os parâmetros para a determinação do que seja escrever “normalmente” encontram-se, normalmente, associados àquilo que a escola espera para a série e idade escolar a que pertence o sujeito e, quase sempre, limitam-se a critérios formais, relacionados aos aspectos ortográficos, sintáticos, semânticos e, às vezes, textuais. Dois aspectos centrais ficam, assim, excluídos do diagnóstico, do projeto terapêutico e também dos objetivos visados pela escola: trata-se, por um lado, do aspecto discursivo, que inclui, dentre outras facetas, a questão das condições de produção e da autoria e, por outro, da relação entre o sujeito e a linguagem. A consideração por tais aspectos é que garante, a meu ver, que o trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita possa alcançar efetivamente a sua dimensão terapêutica e escapar da já conhecida re-edição da prática pedagógica. Nesta direção, cabe ao terapeuta compreender como se dá o funcionamento da linguagem escrita daquele sujeito, o que significa, por primeiro, entender que se trata de um funcionamento único, posto que pertence a um sujeito singular. Para flagrar este funcionamento é necessário, em primeiro lugar, compreender como aquele sujeito se relaciona com a linguagem escrita, ou seja, qual a sua postura em relação a ela. Isso significa não apenas reconstruir com ele sua história de letramento, mas sobretudo levá-lo a perceber que ele não é o único agente desta história. As práticas de letramento levadas (ou não) a cabo na família, na escola e em outras agências de letramento deixam marcas indeléveis e, não raro, ajudam terapeuta e paciente a compreenderem porque o sujeito se relaciona com a escrita de uma determinada forma. Além disso, é fundamental que o espaço terapêutico permita ao sujeito revelar suas hipóteses sobre a linguagem escrita e, aqui, não me refiro apenas (e nem principalmente) às hipóteses sobre o sistema gráfico e ortográfico, mas sim sobre o modo como linguagem escrita recorta e significa o mundo. Em outros termos, interessa saber como a linguagem faz questão e faz sentido para o sujeito. Não vejo outra maneira de chegar à compreensão do que é o discurso escrito para o sujeito que não pelo próprio discurso. Permitir que o sujeito revele sua compreensão acerca deste objeto de conhecimento tão vago e fluído para ele implica, necessariamente, criar condições para que ele revele a sua linguagem escrita, ou seja, o seu modo de ler e escrever, o qual, muitas vezes, aparece sob a forma de uma interdição, de um veto: não sei, logo não leio e não escrevo. Para que ele deseje ler ou escrever, é preciso que tais atividades façam sentido; então, é preciso que elas tenham, de fato, sentido, ou seja, que a leitura e a escrita se dêem dentro de uma determinada situação de produção. Para tanto, é necessário ter o que dizer, para quem dizer, porque dizer e em que condições. Mas é preciso, fundamentalmente, dizer de algum lugar, ou seja, assumir uma posição discursiva e a partir dela enunciar um discurso que seja significativo para seu autor. A possibilidade da autoria passa pela capacidade de tecer, a partir do aparelho de formas da enunciação, um discurso autônomo, um discurso que pode não apenar seguir, mas, principalmente, subverter a ordem. Os textos dos pacientes da clínica fonoaudiológica parecem-se, freqüentemente, com um mosaico: são formas fixas angariadas aqui e acolá e amarradas num todo que, quase sempre, não faz sentido, um todo que reclama por uma organização e exige um leitor demasiadamente generoso, para ser capaz de ler para além do que está grafado e para supor o que se pretendeu dizer. Por trás das dificuldades (orto)gráficas, sintáticas, semânticas e textuais, estes textos escondem algo maior, mas menos facilmente perceptível: eles não têm autor; há apenas alguém que o produziu, que juntou palavras e frases. Falta-lhes a instância que garantiria a unidade de sentido, a consistência das idéias, a amarração das partes e, sobretudo, o manejo preciso e minucioso das unidades lingüísticas, de modo a atingir os objetivos pretendidos. Para se alcançar tão refinadas capacidades lingüístico-discursivas, é necessário, sem dúvida, conhecer as formas lingüísticas, compreender as regras semânticas, possuir um léxico amplo e variado, manejar com desenvoltura os mecanismos coesivos e os dispositivos argumentativos. Isso tudo, de certa forma, está nos materiais didáticos de língua portuguesa e nas estratégias terapêuticas do fonoaudiólogo. Mas nada disso terá o efeito pretendido (ou que, a meu ver, se deve pretender), se tais recursos lingüísticos não forem empregados para construir um texto que nasceu de uma vontade enunciativa, capaz de revelar que por trás daquele texto há um sujeito que domina tão bem a regra, que é capaz de burlá-la e, ainda assim, ser autor. Se não fosse assim, teríamos que concordar que Martin Amis não domina as regras básicas de conversão grafofonológica ou que Clarice Lispector não conhece os princípios básicos da coesão. Se não é este o caso, como explicar os fragmentos lidos no início? No caso de Amis, penso que sua “sonorização” seja um índice de sua famosa subversão, em que poetas ganham fortunas por um soneto e roteiristas de cinema vivem à beira do esquecimento. Já Clarice decide, em 22 de novembro de 1969, em sua crônica diária no Jornal do Brasil, literalizar seu brain storm. Para isso, porém, alerta-nos, logo no início: “A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente”. Penso, assim, que estes fragmentos ilustrem genuinamente escritas transtornadas, que, no entanto, têm autores e, por isso, não são transtornos da escrita. Referências bibliográficas: AMIS, Martin. Água pesada e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro, Rocco, 2004.
 
Contato: de-angelis@uol.com.br
 

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