LINGUAGEM COMO MATERIAL CLÍNICO E DE PESQUISA - LÍNGUA DE SINAIS NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA
Maria Cecília de Moura
Palestrante
Instituição: PUCSP
 
O trabalho fonoaudiológico com Surdos tem se pautado por uma atuação que toma como objeto a oralização do Surdo. Este enfoque tem sua origem na Antigüidade, quando se considerava que os Surdos não eram seres humanos competentes. Isto decorria do pressuposto de que o pensamento não podia se desenvolver sem linguagem e que esta não se desenvolvia sem a fala. Desde que a fala não se desenvolvia sem a audição, quem não ouvia, não falava e não pensava, não podendo, portanto, receber ensinamento e, então, aprender. Aristóteles considerava que a linguagem era o que dava condição de humano para o indivíduo. Portanto, sem linguagem o Surdo era considerado não humano. Para ele também o Surdo não tinha possibilidade de desenvolver faculdades intelectuais, que dependiam basicamente da capacidade do indivíduo falar (Moura, 2000). No Brasil, a partir do fim da década de setenta, surge o interesse por um trabalho que envolvia o uso de Sinais, trazido dos EUA. Este trabalho, denominado Comunicação Total foi tratado como uma filosofia que segundo Schindler (1988, p:10): ”...incorpora as formas de comunicação auditivas, manuais e orais apropriadas para assegurar uma comunicação efetiva com as pessoas surdas....”. Esta filosofia foi rapidamente transformada em método em que o objetivo continuava sendo a oralização dos Surdos, agora por meio do uso de sinais que eram colocados na ordem do português. Esta forma de trabalho, após um estudo aprofundado por vários profissionais da DERDIC/PUCSP, foi submetida a “validação” por meio de uma pesquisa. Esta pesquisa: “Utilização de Comunicação Total em Sujeitos com Deficiência Auditiva Severa” publicado em:\\\"Distúrbios de Comunicação. Estudos Interdisciplinares\\\" por Paiva, A.F.; Spinelli, M.; Vieira, S. et all (Org.) em 1981, concluía que a utilização de Sinais não prejudicava o desenvolvimento oral e auditivo dos sujeitos pesquisados. Vê-se, portanto, que o objetivo, naquele momento, era se verificar se as crianças, objetos de pesquisa, não teriam retirada de si a possibilidade de se transformarem em ouvintes. A forma de avaliação seguia um critério rigoroso de contagem de fonemas, respostas auditivas e aferição das estruturas lingüísticas que as crianças eram capazes de produzir. O atendimento das crianças estudadas foi realizado por fonoaudiólogos num contexto clínico. O que foi deixado de lado naquele momento foram outros aspectos da linguagem que não eram objetos de estudo. A relação dos sujeitos com seus interlocutores, a possibilidade de compreensão e de expressão por meio dos Sinais não era objetivo daquele trabalho que refletia as condições teóricas vigentes naquele momento. Isto não empana a seriedade daquele trabalho, apenas mostra o que era significativo naquele momento em termos de pesquisa e de compreensão do indivíduo Surdo. Nos últimos vinte e cinco anos houve uma transformação significativa do ponto de vista pelo qual o Surdo é visto. No meio acadêmico tivemos a produção de dezenas de trabalhos de mestrado e doutorado, criação de Estudos Pós Graduados nesta área em Universidades de renome além da apresentação de trabalhos em congressos que mostram uma mudança que não diz respeito apenas a uma mudança de paradigmas, mas que refletem uma nova forma de ver o Surdo e de se compreender a linguagem. Foi de importância fundamental para a formulação de novas linhas de pesquisa a transformação que se deu com relação à possibilidade de não se ver mais a linguagem em seus aspectos formais relacionados às estruturas lingüísticas e aos aspectos fonológicos, mas poder encara-la de forma mais ampla como constitutiva do sujeito na construção de sua identidade (HABERMAS, 1990). A transformação que se verificou no âmbito da linguagem, não mais vista como algo próprio e inerente a um sujeito, mas como algo construído na relação do indivíduo com o meio que o cerca (LODI, 2004) também possibilitou uma mudança significativa na forma de se pensar a atuação com o Surdo. Verifica-se que muitos trabalhos foram realizados levando-se em consideração a possibilidade do indivíduo Surdo vir a ser um ser social no meio dos seus iguais. No âmbito da fonoaudiologia esta mudança trouxe seus frutos, não apenas com relação aos trabalhos científicos publicados, mas na própria atuação fonoaudiólogica. Já encontramos relatos e publicações que entendem que a língua de sinais é uma possibilidade real e fundamentada na atuação com Surdos. Os trabalhos de Lodi (2004, 2005), Lacerda (2000, 2002, 2004), Moura (2000, 2004, 2005), Harrison (2005) são apenas alguns exemplos de trabalhos científicos que demonstram a possibilidade de atuação fonoaudiológica com o indivíduo Surdo tendo como base uma abordagem bilíngüe (língua de sinais e português). Os trabalhos que lidam com Histórias Orais (tidas como Histórias Verbais no caso de Surdos) demonstram a necessidade de se considerar o respeito pela diferença na atuação fonoaudiológica com Surdos. Este respeito não de relaciona apenas a uma postura politicamente correta do ponto de vista de um discurso que não é aplicado na prática dos consultórios fonoaudiológicos, mas que deve ser entendido como uma possibilidade real de atuação. Os resultados de atuações baseados numa nova perspectiva teórica metodológica já podem ser encontrados nas obras dos autores acima citados. Sabemos que ainda são necessárias muitas pesquisas que dêem mais peso e sustentação ao que consideramos um direito de todo Surdo: a construção de um mundo interno pleno pela presença e não pela falta, mas os caminhos já estão abertos. No atendimento clínico realizado pelos alunos do Curso de Aprimoramento: Língua de Sinais, Linguagem e Surdez organizado pelo GT: Linguagem e Surdez da PUCSP (em colaboração com a DERDIC/PUCSP) recebemos um enorme contingente de Surdos das mais diferentes idades cuja história se assemelha no conteúdo e no resultado final. Temos Surdos que adquiriram linguagem de forma fragmentada e que não conseguem se organizar e organizar o mundo à sua volta. Os resultados colhidos até agora, após três anos e meio de trabalho demonstram a possibilidade de uma atuação fonoaudiológica, mesmo tardia, em que estes indivíduos se vêem possibilitados de adquirir linguagem e de se constituírem cidadãos plenos. O trabalho realizado não se caracteriza por uma técnica reabilitadora, mas pela possibilidade destes indivíduos serem “ouvidos” nas possibilidades que têm, tendo respeitadas as suas condições particulares. Temos como parceria Surdos adultos que dominam a língua de sinais e que nos ajudam na construção de uma língua para nós estrangeira. O que sabemos que podemos realizar é propiciar a autonomia de surdos que se vêem, então, capazes e atuantes numa sociedade que nem sempre os respeitam como deveriam. Sabemos que muito há ainda a ser feito, mas, neste momento podemos afirmar que a construção destas novas veredas tem uma base sólida em que podemos nos basear para propor uma atuação que mais do que fonoaudiológica é humana e baseada no aprofundado estudo teórico das mais diversas áreas. Bibliografia HABERMAS,J. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. LODI, A. C. A leitura como espaço discursivo de construção de sentidos: oficinas com Surdos. São Paulo: tese de doutorado. LAEL – PUCSP, 2004. MOURA, M.C. O Surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeito: Revinter, 2000. PAIVA, A.F., SPINELLI, M., VIEIRA, S., MOURA, M. C., CUNHA, M. C. P. A (org.) Utilização da Comunicação Total em Sujeitos com Deficiência Auditiva Severa. Distúrbios de Comunicação. Estudos Interdisciplinares. São Paulo, 1981, v.1, p.147-188.
 
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