DISCUSSÃO DE CASO: VOZ E EXPRESSIVIDADE |
Maria Laura Wey Märtz
Comentador(a) de Caso |
Instituição: PUC-SP |
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A palavra expressão surge na filosofia durante o século XVII, num percurso de modificação na relação de aparência e mesmo semelhança entre uma essência e sua forma de manifestação. Por esta ocasião estabelece-se a relação simbólica entre a idéia ou sentimento a exprimir e a maneira pela qual tal conteúdo é expresso, de maneira que expressão passa a recobrir as manifestações por meio de símbolos, implicando, portanto, a diversidade, distância e, principalmente, a alteridade entre símbolo e conteúdo simbólico. Como atividade simbólica, a expressão configura um modo propriamente humano de ser ou de realizar-se.
Se, num primeiro momento, as relações de semelhança e proximidade configuraram a análise das manifestações de idéias, conceitos e sentimentos, a palavra expressão ganha, no século XVII, o sentido de explicitar a relação de diversidade e o distanciamento entre as idéias e suas possíveis manifestações. No entanto, um texto como o Crátilo, de Platão, no século IV AC já discute o assunto. É um diálogo que enfoca justamente a oposição entre a perspectiva que compreende a justeza dos nomes, uma vez que os nomes e as coisas nomeadas são da mesma natureza e qualidade e, por outro lado, e a convencionalidade dos nomes, uma vez que a realidade está em constante mudança, portanto não há semelhança que se mantenha, os nomes são convenções que designam as idéias e as coisas, bem como as pessoas.
A expressão, como atividade simbólica, quer a tomemos sob a perspectiva da semelhança ou da alteridade entre conteúdo e forma, no entanto, por muito tempo foi associada ao sentido de exteriorização, ou revelação, de um conteúdo pré-existente. Foi preciso esperar o século XX para compreendermos, a partir de estudos de crítica literária, entre outros estudos críticos de arte, que forma e conteúdo não estão separados: ou seja, a expressão passa a ser apreendida como criação, como processo de produção de sentidos em que forma e conteúdo são solidários. Não há uma idéia pré-existente, e uma forma também pré-existente a expressá-la, mas há uma construção de sentidos que é configurada e transformada no ato de expressão e também de percepção de tal expressão.
Voltemo-nos para a voz na terapia fonoaudiológica. A voz é a materialidade sonora com a qual constituímos nossa linguagem oral. Sabemos que muitos sentidos podem e são atribuídos a uma mesma palavra, apenas variando-se as curvas melódicas de sua entoação, de modo que o sentido, nestas situações, passa a ser dado apenas pela sonoridade, quase que sendo possível excluir, para efeito de compreensão, o segmento verbal. Por outro lado, a voz de uma pessoa, em si mesma, porta sentidos que são percebidos de dentro do código social que os torna possíveis. Na clínica fonoaudiológica algumas questões são freqüentes a respeito dos sentidos da voz: O que há com a voz do paciente que nos procura? Por que ele nos procura? Poderemos constatar a presença de uma alteração orgânica, ou funcional, ou ainda poderemos nos deparar com nenhuma alteração perceptível. O que isto pode significar? Será apenas no discurso do paciente, no diálogo que estabelecemos com ele, que poderemos perceber uma queixa e uma demanda terapêuticas que expressam, de variadas formas, as também variadas limitações quanto ao uso da voz. Ou seja, o paciente não consegue criar com sua voz porque há limitação, impossibilidade ou incômodo que se expressam por meio de uma voz rouca, aguda, áspera, soprosa e tantas outras qualidades que poderíamos aqui elencar.
Quando adjetivamos uma voz como expressiva, é comum compreendermos neste adjetivo uma voz melodiosa, viva, flexível. Mas não será também expressiva a voz monotonal? A voz rouca? A voz que está limitada às freqüências mais agudas ou graves de sua extensão?
Podemos compreender que a voz expressa muitas qualidades e conteúdos, aqui incluídas suas próprias limitações. No entanto, tais limitações aparecem em situação de interação verbal, ou seja, nos diálogos estabelecidos com outros, mesmo quando um desses outros seja a própria pessoa que fala, ou canta, ou interpreta um discurso oral.
No trabalho terapêutico, portanto, acreditamos ser importante que o paciente amplie suas condições de escuta para a voz, o que pode ser providenciado quando, por exemplo, trabalhamos com ele contextos discursivos diversos. A voz não soa exatamente a mesma quando o paciente conversa com o terapeuta, ou quando lê uma poesia, canta uma canção, narra uma história ou conta uma piada. Também não é a mesma quando ele nos apresenta, de modo dramatizado, uma cena por ele vivida em seu ambiente de trabalho, ou quando mais simplesmente relata um acontecimento envolvendo seus familiares ou amigos. São contextos expressivos diversos, com também diversos conteúdo que requerem modulações e adaptações na forma expressiva e que, aos poucos, vão flexibilizando e ampliando os limites de que o paciente dispunha para a expressão e percepção de sua voz. No trabalho com crianças a variação destes contextos ocorre de modo muito freqüente quando elas fazem dramatizações de histórias com bonecos, fantoches ou com suas próprias pessoas, nas brincadeiras de faz-de-conta ou a partir de narrativas da literatura tradicional e contemporânea. Elas alternam as vozes de animais, ou das figuras familiares, dos companheiros de escola, procurando dar-lhes expressão sonora e verbal, dentro do espaço lúdico. Com isso, ampliam e apropriam-se de possibilidades expressivas as mais variadas, desde que o terapeuta possa, também ele, brincar. Sobre isso falaremos mais adiante.
Os contextos expressivos de que falamos são a base de constituição dos chamados gêneros discursivos, que são definidos, conforme Bakhtin, como formas relativamente estáveis de enunciados que são elaboradas nas diferentes esferas de interação social. A transitividade entre os gêneros orais, mas também escritos, faz com que o trabalho terapêutico com a voz seja significativo para o paciente, pois ele pode explorar de forma criativa não apenas os sentidos que propõe para, por exemplo, a leitura de um conto de ficção, como também as variadas formas de expressar estes sentidos. E aqui podem se tornar significativas e interessantes, também, as técnicas que ofereçam ao paciente condições de perceber e explorar características mais específicas da materialidade sonora da voz, como variações de intensidade, de altura, de ressonância, de ritmo, para que sua expressão vocal possa ganhar novas perspectivas. Este trabalho, no entanto, tem um tempo preciso para acontecer no percurso terapêutico, ou seja, o tempo em que o paciente se encontra fortalecido para explorar as possibilidades de produção e percepção de sua voz sem que isso se configure para ele como um momento de exposição ao sofrimento. Isto porque muitos pacientes vivem suas limitações vocais como única maneira de expressão, e tal maneira pode constituir um sintoma da realidade psíquica que precisa ser melhor compreendido pelo par terapêutico antes que se possa trabalhar mais diretamente com novos contextos expressivos.
O que aqui propusemos tem sua base terapêutica naquilo que Winnicott chama brincar, pois é no brincar que “a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação.” Para este psicanalista, aquilo que se depreende e observa no brincar da criança é também válido para o brincar do adulto: o que é evidente nas brincadeiras das crianças, no entanto, manifesta-se no adulto principalmente no decorrer da expressão verbal, que é a forma privilegiada de comunicação do adulto não apenas no espaço terapêutico, mas nas demais situações de comunicação em seu cotidiano. Na expressão verbal do adulto o brincar aparece através da escolha das palavras, das inflexões da voz e do senso de humor. Portanto, ao brincar com as possibilidades expressivas da voz, terapeuta e paciente podem construir um percurso rico e criativo, sem que a submissão a padrões prévios se faça presente, uma vez que tal submissão impede justamente que o paciente ganhe vitalidade e autonomia em sua expressão. E vitalidade e autonomia de expressão são as elaborações e conquistas mais preciosas de um processo terapêutico com a voz.
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Contato: laumartz@uol.com.br |
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