ESTUDO DE CASO - LINGUAGEM EM SÍNDROME |
Maria Inês Bacellar Monteiro
Comentador(a) de Caso |
Instituição: UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA - UNIMEP |
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Neste texto tenho por objetivo apontar contribuições da abordagem histórico-cultural para a compreensão da linguagem de sujeitos que apresentam síndromes e para a análise daquilo que a clínica fonoaudiológica pode oferecer para a constituição destes sujeitos. A partir da concepção de Vygotsky sobre o funcionamento mental é possível refletir sobre o que significa o diagnóstico de uma síndrome para a formação do sujeito e para as relações que vão se estabelecer na família e no grupo social. Também é possível analisar como o diagnóstico pode influenciar os processos de interação na clínica fonoaudiológica. Clínica esta entendida como um espaço social de intervenção, através da construção conjunta de significados, que visa instrumentalizar o paciente e suas famílias para que eles possam construir, na e pela linguagem, a sua própria história (PANHOCA e cols., 2005, p.4-5).
Vygotsky (1995), indica aspectos bastante relevantes sobre crianças deficientes, seus problemas e características. Seus textos produzidos entre 1924 e 1931 tratam de discussões que têm, ainda hoje, uma atualidade notável. Os estudos destacam a importância do social e a necessidade de se passar da visão biológica ao campo social e histórico do funcionamento do homem. Argumenta que as leis gerais de desenvolvimento são iguais para todas as crianças, embora existam peculiaridades na organização sociopsicológica da criança com deficiência, que requerem caminhos alternativos e recursos especiais. Neste sentido, é na vida coletiva e no caráter social do comportamento que a criança encontra material para a formação das funções internas. Quando uma função é insuficiente ou limitada, outra pode surgir para substituí-la ou auxiliá-la. Assim, a criança deficiente poderá acionar mecanismos compensatórios, que dependerão das condições que o meio lhe ofereça e das mediações que ela estabeleça com o seu meio físico e social. Segundo Góes (2002) “não é o déficit em si que traça o destino da criança. Esse ‘destino’ é construído pelo modo como a deficiência é significada, pelas formas de cuidado e educação recebidas pela criança, enfim, pelas experiências que lhe são proporcionadas.” (p. 99).
Lacerda e Monteiro (2002), refletindo sobre as proposições formuladas por Vygotsky, destacam que “ ...é um erro considerar a anormalidade infantil como uma doença, pois avaliam-se somente os problemas e não se nota a enorme reserva de recursos saudáveis acumulada em cada criança, qualquer que seja o seu déficit.”(p. 31). Ao caracterizar um quadro sindrômico, por exemplo, é preciso identificar as possibilidades de desenvolvimento e não somente olhar para os processos patológicos que constituem sua origem. Assim, abrem-se caminhos diferenciados, que ampliam a possibilidade de ação do meio, favorecendo o desenvolvimento. Conforme apontado por Padilha (2001), “palavras como ‘déficit’, ‘incapacidade’, ‘imaturidade’, ‘transtornos’, ‘portadores de deficiência’, ‘anormais’, ‘carência’, ‘retardo’, ‘síndromes’, etc., marcam os encaminhamentos de crianças e jovens para tratamentos especiais, atribuindo-lhes problemas como sendo apenas individuais e de origem biológica.” (p.30). Neste sentido, os desvios são colocados nos sujeitos.
Embora as características orgânicas sejam uma evidência, olhar o sujeito deficiente apenas do ponto de vista orgânico, leva a uma falta de expectativa de seu desenvolvimento e aprendizagem. Essa postura não contribui para a discussão de questões relacionadas às condições socioculturais necessárias para uma transformação. Quando a prioridade é colocada no déficit, o sujeito em si fica em segundo plano. O diagnóstico de uma síndrome pode impor limites ao sujeito ao invés de criar uma condição que privilegie as possibilidades de desenvolvimento. O diagnóstico “...tende a empregar parâmetros para identificar características estáveis com o fim de classificar. Negligencia os aspectos dinâmicos e as potencialidades da criança, estabelecendo níveis predeterminados para seu desenvolvimento.” (GÓES, 2002, p. 102).
Estudando as concepções que pais e profissionais têm da deficiência mental, Camargo (2000) refere-se ao estudo de Conti (1998) que relata um caso de uma menina de seis anos, com atrasos no desenvolvimento motor e de linguagem, diagnosticada erroneamente como tendo síndrome de Down e o que decorreu deste diagnóstico no relacionamento pais-filha e, conseqüentemente, no desenvolvimento dessa criança. O estudo realizado sob uma perspectiva psicanalítica conclui que este atraso é decorrente de fatores inconscientes dos pais que desfavoreceram o desenvolvimento da filha em virtude do vínculo estabelecido. O diagnóstico da síndrome de Down, provavelmente devido ao estigma que carrega, dificultou o relacionamento entre pais e filha, o que prejudicou o desenvolvimento psico-emocional dessa criança, e isso repercutiu no seu desenvolvimento como um todo. Camargo (2000) conclui que “O diagnóstico “paralisou” os sentimentos dos pais, prejudicando as funções materna e paterna, essenciais para o desenvolvimento afetivo-social.”, o que sugere, segundo a autora, “....que o relacionamento pais-filhos de pessoas que efetivamente apresentam a síndrome de Down ou alguma deficiência mental possa ficar prejudicado. O vínculo e as funções essenciais materna e paterna acabam sendo estabelecidos muito mais em função do “rótulo” e dos preconceitos presentes na cultura do que propriamente pelas características próprias desses indivíduos.”(p. 12 ).
A teoria histórico-cultural traz contribuições fundamentais para a clínica fonoaudiológica orientando sua prática para o plano do desenvolvimento interpessoal, enfatizando o papel da linguagem na constituição dos sujeitos e buscando as possibilidades de superação/compensação dos problemas através da mediação do terapeuta no processo de desenvolvimento do sujeito. Freitas (2001), refletindo sobre o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP), amplamente difundido pelos pesquisadores da perspectiva histórico-cultural, demonstra como o desenvolvimento é impulsionado pela aprendizagem. Em seu estudo, a autora retoma o conceito de ZDP, destacando que o desenvolvimento real corresponde ao desenvolvimento consolidado das funções mentais – o que a criança faz sozinha, por si mesma, sem a necessidade de ajuda de pessoas mais experientes. Já o desenvolvimento potencial, relaciona-se àquilo que a criança consegue realizar com a ajuda daqueles que são mais experientes. Entre estes dois níveis de desenvolvimento encontra-se um espaço ocupado pelas funções emergentes, que ainda não foram manifestadas pelas crianças de forma independente, denominado de zona de desenvolvimento proximal. Para Vygotsky, aquilo que a criança consegue fazer com a ajuda dos outros, é muito mais indicativo de desenvolvimento mental do que aquilo que ela consegue fazer sozinha. É o sinal das possibilidades! “Esta conceituação traz implicações decisivas para a avaliação e para os processos terapêuticos, pois, enfatiza que é pela interação e na interação com pessoas mais experientes que a criança constrói as funções psicológicas que vão permitir a ela resolver problemas que ainda não tem condições de resolver sozinha.”(FREITAS, 2001, p. 27). Nesta perspectiva, entende-se a linguagem como um sistema de signos organizados na e pela cultura, além de ser uma forma de interação entre os homens e mediadora entre o sujeito e o objeto do conhecimento. É ela quem constitui o pensamento e a ação. É, portanto, muito mais do que um meio de comunicação. É a linguagem que transforma as funções psíquicas elementares (os reflexos) em funções superiores (atenção voluntária, memória, operações com signos e a formação dos conceitos). Decorrente desta concepção de homem e de linguagem e da forma de compreender as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, pode-se concluir que a clínica fonoaudiológica voltada para os sujeitos que apresentam síndromes, pode criar condições concretas de interação que propiciem o desenvolvimento de sua linguagem e formação individual.
Compreender a linguagem de sujeitos que apresentam síndromes tomando como base a perspectiva histórico-cultural, significa compreender o homem como um ser social, interativo, histórico e cultural. Significa entender a linguagem como uma atividade constitutiva do sujeito e produto das relações sociais interpessoais e históricas. Significa buscar mais informações na plasticidade cerebral. Significa “....deslocar o centro da avaliação diagnóstica – da centralidade no orgânico e no individual para a análise das condições sociais concretas de vida do sujeito.” (WERNER, 1997, p. 200).
Referências Bibliográficas
CAMARGO, E. A. A. Concepções de deficiência mental por pais e profissionais e a constituição da subjetividade da pessoa deficiente. Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP: (s. n.), 2000.
FREITAS, A. P. de. Zona de desenvolvimento proximal: a problematização do conceito através de um estudo de caso. Tese de Doutorado – Campinas, SP: (s.n.), 2001.
GÓES, M. C. R. de. Relações entre Desenvolvimento Humano, Deficiência e educação: Contribuições da Abordagem Histórico-Cultural. In: OLIVEIRA, M. K.; SOUZA, D. T. R.; REGO, T. C. (org.). Psicologia, Educação e as Temáticas da Vida Contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002, p. 95-114.
LACERDA, C. B. F. de; MONTEIRO, M. I. B. Linguagem e Deficiência na Abordagem Histórico Cultural. In: PANHOCA, I.; LACERDA, C. B F. (Org.). Tempo de Fonoaudiologia III,. São Paulo, 2002, v. 02, p. 25-42.
PADILHA, A. M. L. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
PANHOCA, I.; CAMARGO, E. A. A.; FREITAS , A. de; MONTEIRO, M. I. B. O Grupo Terapêutico-Fonoaudiológico e o Processo de Construção da Identidade e da Subjetividade. Revista Fono Atual, n. 31, 2005.
WERNNER, J. J. Transtornos hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o significado do diagnóstico. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências Médicas. UNICAMP, 1997.
VYGOTSKY, L. S. O defeito e a compensação. Em: Vygotsky, L. S. Fundamentos de Defectologia. Ed. Pueblo y Educacion, Havana, Cuba, 1995, p. 27 – 41.
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