GAGUEIRA: A INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA E O LIVRO INFANTIL |
Polyana Silvia de Oliveira
Palestrante |
Instituição: UNILUS - CENTRO UNIVERSITÁRIO LUSÍADA SANTOS SP |
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A compreensão da gagueira na vertente dialético-histórica nos remete, necessariamente, para a idéia de que é a linguagem que engendra o sujeito, ela é a razão de sua constituição, determinando os processos de significação pelos quais cada sujeito passará a constituir a sua história. Tal vertente pauta-se em concepções advindas da Lingüística do Discurso, da Psicanálise e da Psicologia Social que são discutidas à luz da Fonoaudiologia permitindo, assim, circunscrever a gagueira como um sintoma de linguagem. Portanto, pensar o orgânico da gagueira, o subjetivo/psíquico e o sócio-cultural é focalizar a linguagem, não como um processo linear de emissão-recepção do código lingüístico, mas como elemento estruturante do sujeito.
Compreender como esse aporte teórico se realiza na prática clínico-terapêutica fonoaudiológica, a partir da utilização do livro infantil na clínica da gagueira, é o objetivo do estudo aqui apresentado. Para tanto, analiso a intervenção terapêutica a partir de vinhetas clínicas. Os sujeitos apresentam condições de estigmatização da fala e suas histórias denotam uma trajetória de sofrimento com relação à gagueira. Segundo Nasio (2001), a disposição em imagens de uma situação clínica tem um caráter didático, trazendo uma força cênica que permite mostrar a relação teoria e prática. Este estudo está de acordo com as Normas Éticas e com o Termo de Consentimento firmado.
Assim, é preciso considerar o sintoma-gagueira tanto como uma modalidade de subjetivação quanto como uma experiência singular do sujeito. Isto quer dizer que na gagueira há aspectos ligados a uma dimensão particular da subjetividade, que criam um “molde” para as experiências do sujeito – a ideologia do bem falar; a condição subjetiva paradoxal; a estigmatização da fala – e acabam determinando uma condição comum para àqueles cuja fala se apresenta gaguejada. Como também, há aspectos ligados à dimensão singular da subjetividade, aquilo que faz de cada sujeito um ser que é um e não outro, estabelecendo uma forma única e pessoal de lidar com esses aspectos particulares da gagueira.
Tomando a gagueira como um sintoma de linguagem, e não como uma doença/desvio da fonoarticulação, podemos a partir das entrevistas iniciais com a criança e sua família traçar um caminho de entendimento do caso por meio do discurso destes. Nesse processo de compreensão e lida terapêutica a posição ocupada pela família é fundamental, esta faz parte do processo para que o atendimento à criança não fique impossibilitado, desse modo, é dado à família um espaço de interlocução com o terapeuta, a fim de (res)significar a queixa, o sintoma e a posição ocupada pela criança nas relações interpessoais. Dentro do modelo defendido, as estratégias de cunho proprioceptivo (fonoarticulação) e o contar/ler o livro infantil, situação circunscrita pelo discurso do terapeuta, tomam a queixa da criança e abrem para a constituição de uma demanda.
Os sujeitos que compõe o relato desse estudo, têm 10 anos, são meninos e foram trazidos pelos pais devido à queixa de gagueira. Ambas as famílias tentaram maneiras de eliminar a gagueira, sem sucesso, além de já ter procurado anteriormente por tratamento fonoaudiológico.
O Sujeito 1 trouxe relatos de dificuldades sociais - “os meninos me xingam de gago na rua” -, de que apresentava gagueira ao telefone, com os familiares, que pediam “pra falar devagar” e que achava “bom vir na fono pra poder parar de gaguejar”, dizendo xingar “com um palavrão quem fica me zoando”. No discurso dos pais aparecia a preocupação com as zombarias e com a manutenção do quadro. Usaram expressões do tipo: “patinando nas palavras”, “muito gago”; “não fala normal”, “gaguejadinha”, “fica nervoso na sala de aula e dá uma gaguejada”.
O Sujeito 2 trouxe também relatos de dificuldades sociais -“os meninos do prédio ficam me imitando”; “na escola me xingam de gago” – que ao telefone gaguejava e não atendia o interfone. No discurso dos pais aparecia a preocupação com a manutenção do quadro – “vem piorando a cada dia”; “estamos muito preocupados com isso”; “os familiares percebem e perguntam por que ele não melhora”, ”ele não desce pra brincar“, “tenho me preocupado muito, tenho orado muito, porque tá difícil”. Os pais solicitaram na escola que não o chamassem para ler.
O livro infantil situou-se na terapia como meio de produzir com a criança novos textos sobre a gagueira, dentro de um contexto discursivo no qual às histórias tornaram-se metáforas que permitiram ao sujeito lidar com as angústias frente à interpretação de sua fala como desviante. As histórias infantis falam através de personagens estigmatizados, nas quais há uma trama onde se desenvolve um conflito em que se destaca a não aceitação pelo outro daquilo que foge da regra/norma comum – há algo no personagem-herói que causa estranhamento no outro e que, por isso, vira motivo de zombaria. A temática do livro não se volta para a gagueira, não há nas histórias personagens que gaguejam. O enredo busca dar perspectiva ao que acontece com a criança e sua fala, fazendo com que ela busque sua própria solução por meio do que a história lhe oferece juntamente com os textos orais construídos pelo par paciente-terapeuta na dialogia.
As intervenções, via o livro infantil, permitiram aos sujeitos transformarem simbolicamente o significante – gagueira – numa possibilidade de fala não estigmatizada, abrindo para novos sentidos, deslocando os sujeitos da posição de falante na qual a fonoarticulação é o foco em si mesma. Os efeitos puderam ser notados na medida em que o sintoma cessou no Sujeito 1 e diminuiu de forma drástica no Sujeito 2. A gagueira deixou de confiscar a fala dos sujeitos, permitindo-lhes vivenciar novas posições de falante.
Como prática de linguagem, a história contada por meio do livro fez presença nos sujeitos, na medida em que se voltou para os aspectos da gagueira vinculados à subjetividade como uma modalidade de subjetivação. É a linguagem do/no terapeuta que foi permitindo a desmistificação da gagueira. Portanto, a utilização do livro infantil na terapia não corresponde a uma técnica corretiva, de eliminação da gagueira, como se fosse possível a manipulação do sintoma por meio do livro e tampouco tem objetivos pedagógicos com vistas a ensinar o sujeito a falar sem gaguejar.
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Contato: clifono@terra.com.br |
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