AÇÕES INCLUSIVAS NA FONOAUDIOLOGIA: IMPLICAÇÕES DA (RE)SIGNIFICAÇÃO DE PRÁTICAS FONOAUDIOLÓGICAS RELATIVAS À LINGUAGEM ESCRITA, NO CONTEXTO ESCOLAR, NA DESPATOLOGIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM E NA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS CONSIDERADAS, POR SEUS EDUCADORES, PORTADORAS DE DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM
Claudia Regina Mosca Giroto
Palestrante
Instituição: UNESP - MARÍLIA/SP
 
Por muito tempo a atuação fonoaudiológica no contexto escolar foi determinada pela medicalização da aprendizagem, como conseqüência das influências sócio-históricas que marcaram o surgimento da Fonoaudiologia, no país. Tais influências pautaram-se num modelo médico-clínico direcionado pela padronização de comportamentos tidos como saudáveis (que atendiam à normatização proposta pela Medicina) e pelas ações prescritivas determinadas pelas dicotomias normal-patológico e saúde doença. Também caracterizaram-se, no campo da Educação, pela pedagogia da transmissão de conhecimentos e por um número excessivo de encaminhamentos equivocados à classe especial, de crianças consideradas portadoras de distúrbios de aprendizagem. No campo da Lingüística, revestiram-se de uma interpretação reducionista de linguagem enquanto código sonoro ou gráfico, dependendo da modalidade em questão (oral ou escrita). Da confluência desses fatores resultou uma relação saúde-educação marcada pela atribuição de causas orgânicas e individuais às dificuldades escolares (na verdade, em sua maioria, fruto de um sistema educacional organizado em torno do não-aprender) que direcionou o olhar fonoaudiológico justamente à patologização de aspectos relativos a tais códigos, a exemplo dos aspectos notacionais da escrita, compreendidos como manifestações patológicas características de distúrbios de aprendizagem. É fato que esse contexto tem se modificado, rumo à despatologização da aprendizagem, sob a influência de novos paradigmas no campo da Saúde, da Educação e da Lingüística, principalmente, o que tem permitido a (re)significação das práticas fonoaudiológicas a partir da valorização de condições sócio-históricas e ideológicas. Isso, sem dúvida, tem propiciado novas possibilidades de compreensão acerca das concepções de saúde, de linguagem, de sujeito e de aprendizagem. No entanto, publicações recentes, na literatura fonoaudiológica, de estudos que ainda valorizam, demasiadamente, as questões auditivas e as relações grafo-fonológicas como determinantes desses distúrbios de aprendizagem (o que implica na compreensão “ingênua” de que tais questões se constituem como fatores etiológicos dos mesmos) evidenciam que uma parcela de fonoaudiólogos que ainda prioriza o código, em seu trabalho com a linguagem escrita, tanto no contexto escolar quanto no clínico, não tem condições de assumir uma postura coerente com os princípios da educação inclusiva, que prevê a construção de uma escola acolhedora, capaz de atender às necessidades educacionais não só dos deficientes, mas dos que também são excluídos (tal exclusão não se caracteriza, necessariamente, pela retirada do aluno da sala de aula ou da escola) do processo de escolarização formal por serem considerados como portadores de distúrbios de aprendizagem (sendo tal diagnóstico, frequentemente, fundamentado a partir de dados equivocados de triagens fonoaudiológicas ou de julgamentos dos professores a partir da ênfase a aspectos ortográficos); além de toda a diversidade de alunos, independentemente de suas características físicas, étnicas, culturais, sócio-econômicas, lingüísticas, entre outras, conforme o princípio da escola para todos, solidamente fundamentado na Declaração de Salamanca, divulgada em 1994. Infelizmente, sob essa perspectiva de atuação fonoaudiológica, tanto entre os educadores quanto entre os demais profissionais da escola, predomina, ainda, uma visão distorcida a respeito das possibilidades de atuação do fonoaudiólogo em tal contexto, principalmente daquelas direcionadas à linguagem escrita. Em vista de tais considerações faz-se necessária a discussão a respeito da (re)significação das práticas fonoaudiológicas no contexto escolar inclusivo, de modo a possibilitar a reflexão acerca de uma postura mais coerente com o princípio da escola para todos, subsidiado pela garantia de acesso de todos a todas as oportunidades, independentemente das características e singularidades de cada indivíduo. Com essa expectativa, são apresentadas, nessa discussão, algumas atividades teórico-reflexivas e práticas, caracterizadas pela análise conjunta de ocorrências de aspectos notacionais da escrita, divergentes da norma ortográfica, nos textos produzidos pelos alunos e pela criação de um grupo de apoio (GA) aos alunos considerados, pelos educadores, como “problemas”, que funcionou no período contrário às aulas regulares e se destinou ao favorecimento de situações interativas e interlocutivas com condições mais apropriadas à relação desses alunos com a escrita. As atividades teórico-reflexivas foram realizadas entre os educadores e a fonoaudióloga a partir da interpretação da relação educador-fonoaudiológo determinada pela parceria de ambos e pela compreensão desses profissionais de que não cabe ao fonoaudiólogo o papel de “ensinar” e ao professor o de “aprender”, mas cabe a ambos se constituírem como interlocutores um do outro e de si próprio. Todas as atividades mencionadas foram desenvolvidas numa escola municipal do ensino fundamental, orientadas por princípios teórico-metodológicos sócio-interacionistas, da teoria da enunciação, da análise do discurso e da pesquisa-ação, sendo a participação fonoaudióloga direcionada à promoção de ações inclusivas que possibilitaram a reflexão dos educadores quanto ao diagnóstico de distúrbio de aprendizagem conferido por eles a um elevado número de alunos das séries iniciais de alfabetização; além da reflexão quanto à solicitação equivocada, por parte dos mesmos, de se criar, nessa escola, uma sala de aula específica para os alunos portadores de tais distúrbios e, ainda, de solicitação de encaminhamentos equivocados desses alunos para especialistas de diferentes áreas da saúde. A análise dos resultados relativos a tais ações inclusivas revelou que houve uma maior integração profissional entre os educadores e os dirigentes da escola, com a troca de informações e de estratégias de ensino entre eles; que o GA foi eficiente na “recuperação” dos conteúdos considerados, inicialmente, defasados, o que possibilitou, para a maioria dos alunos que frequentavam esse grupo, o retorno exclusivo às atividades regulares num tempo médio de dois meses, o que também permitiu a conscientização, por parte dos educadores, quanto à capacidade dos mesmos para a compreensão e resolução das dificuldades de seus alunos, antes tidas como sintomas patológicos (isso determinou, inclusive, a mudança de expectativas e de julgamentos dos educadores acerca dos alunos “problemas”, visto que muitos desses alunos passaram da condição de maus alunos para a de bons alunos, após a passagem dos mesmos pelo GA); que as soluções adotadas fortaleceram os educadores, pois se conscientizaram de que, apesar da participação da fonoaudióloga, a maioria das mudanças foram propostas e conduzidas por eles, o que lhes propiciou maior autonomia e segurança nas decisões relativas às atividades complementares ao GA e, ainda, favoreceu uma aproximação educador-aluno mais afetiva. Obviamente, o processo de aquisição da escrita não depende exclusivamente da mediação do professor, visto que tal processo se inicia antes mesmo da escolarização formal, no entanto, a relação interlocutiva entre o educador e o aluno é fundamental para que este último tenha mais condições de compreender as possibilidades de uso real da língua. Assim, espera-se alertar o fonoaudiólogo a respeito do quanto uma interpretação acrítica em relação aos chamados distúrbios da aprendizagem pode se constituir num dos fatores que promovem a exclusão escolar, por meio da “institucionalização invisível\" e/ou evasão escolar, e por meio da perpetuação da legitimação de rótulos e julgamentos dos educadores. O contexto sócio-histórico atual convida-nos, portanto, a refletir, ainda, a respeito do papel social da Fonoaudiologia, não apenas no âmbito da educação inclusiva, mas num contexto mais geral: o da sociedade inclusiva.
 
Contato: cmgiroto@terra.com.br
 

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