ESTUDO DE CASO – DGD |
Simone Aparecida Lopes-herrera
Apresentador(a) de Caso |
Instituição: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP - BAURU |
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A categoria transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) é referente aos transtornos que se caracterizam por prejuízos severos e invasivos em diversas áreas do desenvolvimento como (a) habilidades de interação social recíproca, (b) habilidades de comunicação e (c) presença de comportamentos, interesses e atividades estereotipados. Entram nesta categoria os transtornos autistas, de Asperger, de Rett e os transtornos desintegrativos da infância (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 1995).
O DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria) é uma publicação mundialmente adotada no diagnóstico clínico, principalmente no que se refere aos transtornos mentais. Em 2002, foi editado o DSM-IV TR e a terminologia adotada foi a de transtornos globais do desenvolvimento (TGD). Segundo Perissinoto (2003), é importante registrar que o DSM-IV (1995) e DSM-IV TR (2002) utilizam uma abordagem descritiva dos distúrbios do desenvolvimento.
A classificação proposta pelo DSM-IV TR para os TGD tem o mérito de identificar e valorizar as observações de três grandes eixos do comportamento envolvidos no desenvolvimento humano – cognitivo, social e de comunicação – desde os primeiros anos de vida, sistematizar suas descrições, ressaltar a qualidade do próprio desenvolvimento como foco de avaliação clínico-diagnóstica e trazer uma categoria nosológica de referência para clínicos e pesquisadores da área da saúde mental. Por outro lado, essa proposição não tem a pretensão de ser suficiente para caracterizar e qualificar a linguagem do indivíduo, o que torna necessário complementar a descrição dos comportamentos de comunicação (PERISSINOTO, 2003).
A síndrome de Asperger recebe a nomenclatura síndrome por obedecer a um conjunto
de características claramente definidas que aparece em todos os indivíduos que a manifestam e não por ser uma síndrome de etiologia genética, embora seja esta uma questão atualmente abordada com freqüência, já que, não raro, nas famílias de pacientes com síndrome de Asperger ocorram casos de retardo mental, atraso de linguagem e desordens psiquiátricas (KLIN, 2003).
Em sua descrição original do quadro, Asperger (1944) relatou, como características principais do quadro que descreveu, alterações das funções expressivas (verbais ou não-verbais, inclusive de expressão facial) e dificuldades de contato – isto é, na área da linguagem e do comportamento social. Para o autor, tal distúrbio resultava em severas dificuldades na interação social – em alguns casos, os problemas sociais eram tão profundos que chegavam a prejudicar todo o processo de desenvolvimento. Em contrapartida, em outros pacientes, os problemas sociais eram leves e o alto nível de originalidade de pensamento compensava as pequenas deficiências. Em todos os testes de ritmo, memória (para dígitos e sentenças), leitura e inteligência feitos por Asperger, os sujeitos apresentavam excelentes resultados, compatíveis com a média de idade, porém, nas indagações diretas, algumas respostas eram coerentes e outras não apresentavam coerência alguma.
Quanto à linguagem, Asperger (1944) citou especial criatividade de padrões, pois se utilizavam de palavras inusuais (que se supõe não ser da esfera da criança) e expressões rebuscadas e particulares, ressaltando que até mesmo crianças pequenas se comunicavam como se fossem “pequenos lordes”. Demonstravam habilidade em perceber situações e eventos de um outro ponto de vista, algumas vezes com surpreendente maturidade. Um outro fato é que os interesses que estas crianças manifestavam, como ciências naturais ou astrologia, não eram comuns para sua idade e se apresentavam de forma exacerbada e pouco funcional (liam tudo a respeito dos assuntos, mas pouco compreendiam do que liam).
A \\\\\\\'fala pedante\\\\\\\' já havia sido descrita por Baltimore & Kanner (1944) como uma da características de linguagem do autismo infantil e pode ser descrita como o uso de palavras difíceis ou pouco usuais para a idade cronológica e a construção de frases rebuscadas, o que provoca um tom falso e pouco espontâneo. Porém, Asperger (1944) ressaltou que a compreensão como um todo (inclusive a do próprio vocabulário) pode estar comprometida, já que há a tendência destes pacientes em entenderem o que lhes é dito de forma literal, não conseguindo abstrair o conteúdo metafórico ou de duplo sentido das expressões. A aparente disparidade entre a forma \\\\\\\'pedante\\\\\\\' do falar e a dificuldade geral de compreensão (inclusive de palavras triviais) chama a atenção dos interlocutores.
Não é incomum que, quando crianças, portadores de síndrome de Asperger aprendam a ler espontaneamente e em idade precoce (hiperlexia). O fenômeno da hiperlexia é definido como a habilidade de leitura emergente no período pré-escolar precoce, na qual a criança identifica palavras, decodifica-as fonologicamente (fonema por fonema) e as memoriza. Este processo associado à compreensão da leitura e habilidades gerais de processos semânticos (associação de significado) sugerem que tais crianças apresentam estratégias fonológicas e de memorização desenvolvidas, contudo isto não significa necessariamente compreensão contextual completa, isto é, não garante que estas crianças entendam o que lêem (REGO; PARENTE, 1997; MARTOZ-PEREZ; AYUDA-PASCUAL, 2003).
Problemas como ansiedade e estresse seriam comuns em crianças e jovens com síndrome de Asperger; consituiriam, na verdade, alguns dos gatilhos ou resultados diretamente envolvidos em episódios estressores, como os derivados das inadequações sociais, as dificuldades na resolução de problemas, a sensação de perda de controle, a vulnerabilidade emocional, a falta de percepção social e a rigidez nos julgamentos morais. A experiência de estresse em indivíduos com síndrome de Asperger se manifesta como retração social, obsessão manifestada pelos interesses específicos, ruminação de pensamentos, desatenção, hiperatividade, comportamento agressivo e oposicionista, acessos de mau humor e raiva (MYLES, 2003).
O estudo de caso apresentado será o de uma criança, do sexo masculino, atualmente com 7 anos de idade, mas que – na época do diagnóstico e da avaliação fonoaudiológica inicial – estava com 3 anos e 7 meses. A família procurou atendimento fonoaudiológico devido ao pequeno fluxo de fala da criança e a dificuldades comunicativas de forma geral. Foi indicada avaliação neurológica e com psiquiatra infantil especializado em TGD, para que se realizasse o diagnóstico de síndrome de Asperger. Assim que foi dado o diagnóstico à família, esta foi orientada a iniciar terapia fonoaudiológica, realizar o acompanhamento psiquiátrico da criança e a inserir a criança em uma escola da rede regular de ensino.
Na avaliação fonoaudiológica inicial, foi notado que a criança, em termos sintáticos e fonológicos, apresentava-se dentro dos padrões esperados para a idade, porém havia inabilidades pragmáticas e semânticas. As amostras de fala foram conseguidas somente em situações direcionadas, sendo que a criança não apresentou fala espontânea ou funcional (havia episódios de ecolalia, estereotipias verbais e fala pedante). A criança apresentava interesses específicos (em placas, programas de TV e siglas de partidos políticos) e baixa resistência à frustração quando a conversação não se direcionava a estes interesses. Havia contato de olho esparso, não-contínuo e ocasional (normalmente, em situações em que não houvesse comunicação direta). A criança apresentava dificuldade no uso da primeira pessoa (“eu”), usava o adulto como objeto e preservava rotinas de exploração dos materiais apresentados. Os pais relatavam comportamentos obssessivo-compulsivos. Havia habilidade de leitura desde os 2 anos de idade, segundo relato dos pais, sendo que a escrita tinha aparecido aos 3 anos e 6 meses. Na avaliação, foi notado que não havia compreensão do conteúdo lido e que a escrita era uma reprodução dos nomes ligados aos interesses específicos da criança (boa memória visual). Havia contraste entre a habilidade motora da criança ligada ao desenho (traços rudimentares, compatíveis com a idade) e a escrita (traços mais firmes, maduros para a idade).
No processo terapêutico fonoaudiológico, foram trabalhados, inicialmente, o contato visual, a diminuição das estereotipias verbais (aumento da fala funcional), a intenção comunicativa, a atividade dialógica e as funções comunicativas primárias. Em um segundo momento, o enfoque foi para a utilização da fala em situações variadas de interação social e para a compreensão da leitura e a funcionalidade da escrita. Ao mesmo tempo, eram priorizados outros interesses da criança, expandidos em relação aos seus interesses específicos, sempre procurando a funcionalidade e utilidade destes conhecimentos. Num terceiro momento, foram trabalhadas as habilidades narrativo-discursivas, com o objetivo de reorganizar as experiências vividas e possibiltar à criança um bom desempenho escolar (já que esta era uma queixa da escola) e uma melhor interação familiar e social. O processo terapêutico relatado aqui teve a duração de 2 anos e 2 meses e foi interrompido temporariamente devido à mudança de cidade da criança. O acompanhamento fonoaudiológico tem sido sistemático para reavaliações a cada dois meses desde então.
Importante ressaltar que, durante todo o processo terapêutico fonoaudiológico, foi realizado um trabalho em conjunto com a escola e com o profissional da área de Psiquiatria. A fonoaudióloga visitava a escola a cada bimestre e, em períodos nos quais as orientações e direcionamentos precisavam ser mais sistemáticos, a fonoaudióloga fazia visitas quinzenais à escola, acompanhando a criança em dias letivos completos (para verificação e identificação das situações problemáticas relacionadas a ansiedade e estresse, relatadas pela escola). Acredita-se que só o acompanhamento escolar direto e a interelação dos profissionais da Saúde e Educação é que possibilitarão à criança com síndrome de Asperger um bom desenvolvimento.
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Contato: lopesimone@hotmail.com |
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