A GAGUEIRA SOB A PERSPECTIVA LINGÜÍSTICO-DISCURSIVA |
Nadia Pereira Azevedo
Palestrante |
Instituição: UNICAP |
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Nosso interesse pela gagueira surgiu na época da graduação, na década de setenta, quando a Fonoaudiologia no Brasil ainda dava seus primeiros passos e os pesquisadores na área eram quase inexistentes. Nossos professores importavam teorias positivistas, que alienavam seus discursos em lugares comuns “a gagueira não tem cura” “a tarefa do fonoaudiólogo é controlar a fala do gago” “a gagueira é um mistério” “é muito difícil trabalhar com a gagueira”, como pudemos relembrar, revendo nossas anotações da época da faculdade. Durante o estágio, atendemos um paciente com gagueira, seguindo, fielmente, os ensinamentos de Van Riper1, acompanhados da orientação da supervisora. O resultado (e o termo só pode ser este, mesmo!) foi um paciente completamente submetido à norma da língua, que não podia falar uma palavra sem pensar em como ia fazê-lo, que teria que relaxar lábios, língua, tocar suavemente certo(s) ponto(s) articulatório(s) para, enfim, falar con-tro-la-da-men-te. Chegamos, assim, ao final do processo terapêutico, o momento da alta. O paciente foi desligado do atendimento, quando se mostrou capaz de manter o controle de sua gagueira, pois, conforme o paradigma vigente, era um gago fluente2. Nós, no entanto, permanecemos insatisfeitas com o resultado terapêutico, mobilizadas por questões que a teoria não respondia.
Se considerarmos que a fluência é uma condição utópica, uma vez que ela é caracterizada por sua negação, como assinala Scarpa (1995), todos nós somos gagos, já que a disfluência é constituinte do discurso. Todos apresentamos hesitações, interrupções, pausas silenciosas ou não, prolongamentos de sons, bloqueios de fonemas, sem que isto nos perturbe, a ponto de passarmos a nos ver como maus falantes (termo utilizado por Friedman, 1994, 1997a,1997b). A diferença é que só percebemos um momento de gagueira depois que ele acontece na fala, enquanto que o sujeito gago, ou aquele que se diz gago, percebe a gagueira bem antes de ela acontecer, porque ele prevê o seu erro. Com isso, ele passa a antecipar novos erros e a acrescentar outras palavras e sons a uma interminável lista de ditos não mais utilizáveis, ou sons/vocábulos proibidos.
Neste trabalho, tivemos como proposta o estudo da disfluência a partir do funcionamento discursivo de sujeitos gagos, alçando, como suporte teórico, dois lugares diferentes da Lingüística que compartilham as mesmas concepções de sujeito e linguagem. Privilegiamos, no entanto, questões particulares à Fonoaudiologia, que, por serem inerentes ao estudo da gagueira e sua clínica, escapam ao olhar da Lingüística. Neste sentido, identificamos e problematizamos três pontos considerados nodais para a abordagem discursiva da gagueira: a sua origem, o seu lugar e a tensão língua e fala. Desta forma, interpelamos a teoria por meio da clínica, e, pela via da linguagem, procuramos desvelar o discurso e, conseqüentemente, seu sujeito.
O estudo da gagueira, tal como é significada no discurso de mães de crianças ditas gagas e de sujeitos gagos, nos conduziu a uma série de reflexões.
O Projeto Interacionista em aquisição de linguagem foi o caminho escolhido para refletir sobre a origem da gagueira como efeito discursivo da interpretação. A teoria da Análise do Discurso de linha francesa (AD) permitiu-nos a apreensão de uma visão ideológica do discurso, conjugando os construtos teóricos de três regiões do conhecimento o Materialismo Histórico, a Lingüística e a Psicanálise. Em nosso trabalho, a AD foi teoria e procedimento - base para o nosso estudo sobre a gagueira.
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1. Estudioso da gagueira, filiado à Psicologia Experimental, autor de vários livros sobre este distúrbio.
2. Termo utilizado por Van Riper (1973), cuja técnica terapêutica é denominada “gagueira fluente”.
Dois aspectos foram inicialmente destacados a origem da gagueira e o lugar da gagueira. Sobre a origem, recorremos à teoria Interacionista em aquisição de linguagem, que procura contrapor os processos metafóricos e metonímicos à visão desenvolvimentista da Psicologia. Observa-se que na primeira posição, a criança encontra-se circunscrita à fala do outro na segunda posição, a criança já é um falante submetido ao movimento da língua (é quando ela fala brinqui, porque existe caí, por exemplo) na terceira posição, configura-se um deslocamento do sujeito falante em relação à sua fala e à do outro - é o momento das auto-correções, substituições e do seu efeito no outro, que a toma como gagueira. Acreditamos que este seja um lugar interessante para se pensar a origem da gagueira, uma vez que o adulto, ao interpretar a fala da criança como gaguejada, utiliza um discurso predominantemente autoritário, com solicitações que não a situam em direção à superação, como fale devagar! respire fundo!, por exemplo, o que impede a criança de identificar o erro dentro de um espaço discursivo definido, ou seja, a criança reconhece a existência do erro, mas como não o identifica, é incapaz de movimentá-lo em seu discurso. Pensamos que se o estranhamento da família em relação à linguagem da criança fosse significado e circunscrito discursivamente, ela poderia reconhecer o erro, deslocar-se e, finalmente, assemelhar-se à fala do outro.
O segundo aspecto evidenciado neste trabalho é o lugar da gagueira. Os sujeitos gagos, analisados por nós, identificam a gagueira como estando neles próprios, no outro, na língua, ou no telefone (outro imaginário). Compreendendo a gagueira como um problema de linguagem, ela não estará em nenhum destes lugares, mas no espaço intervalar, no espaço do discurso, em uma relação direta com as condições de produção e a exterioridade. Neste espaço, a gagueira acontece pelas formações imaginárias, onde se apresentam a relação de forças (o lugar a partir do qual o sujeito fala constitui o seu dizer), a relação de sentido (intertextualidade) e a antecipação (capacidade de colocar-se no lugar do seu ouvinte). A antecipação, especificamente, é nitidamente observada nos discursos analisados, uma vez que o sujeito gago relata acreditar que o outro espera pela sua gagueira, critica a sua fala, ou ri da sua falha.
Na análise discursiva de mães de crianças ditas gagas e dos sujeitos com gagueira, identificamos e analisamos propriedades discursivas.
Nos procedimentos de análise, procuramos considerar a noção de funcionamento discursivo como central, ancorando nossas observações nos mecanismos de constituição de sentidos, nas paráfrases e nos efeitos metafóricos.
Com relação à tipologia, os discursos dos sujeitos analisados sobre suas situações de linguagem com seus interlocutores parecem indicar a predominância do discurso autoritário, onde há uma contenção da polissemia, com o apagamento do referente. O locutor é o único agente, o que conduz ao silenciamento do interlocutor/sujeito gago. Este parece ser o funcionamento discursivo dos sujeitos gagos analisados neste trabalho, em relação a suas determinações sócio-históricas e ideológicas.
Esperamos que esta pesquisa contribua para iluminar os estudos sobre a gagueira, uma vez que lança uma nova perspectiva de se olhar este distúrbio a ótica discursiva, que inclui, necessariamente, o sujeito e a linguagem em sua abordagem e vê a gagueira como um lugar de subjetivação discursiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, N. P. S. G. “Uma análise discursiva da gagueira: trajetórias de silenciamento e alienação na língua”. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Fonoaudiologia) – PUC/SP, 2000.
AZEVEDO, N. P. S. G.; FREIRE, M. R. “Trajetórias de silenciamento e aprisionamento na língua: o sujeito, a gagueira e o outro”, In: FRIEDMAN, S.; CUNHA, M.C. (orgs) Gagueira e Subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FRIEDMAN, S. A construção do personagem bom falante. São Paulo: Summus, 1994.
FRIEDMAN, S. Reflexões sobre a natureza e o tratamento da gagueira. In: ___________. Gagueira. In Lopes, O. (Org.). Fonoaudiologia Prática. Cap. 44, São Paulo Editora Roca, 1997a.
___________. Fonoaudiologia e lingüística encontros e desencontros. Mesa Redonda apresentada no Programa de Pós-graduação em Fonoaudiologia, PUC-SP, 1997b. (Mimeogr.).
SCARPA, E.M. Sobre o sujeito fluente. Cad. de Estudos Lingüísticos, Campinas, v.29, p.163-184, Jul./Dez., 1995.
VAN RIPER, C. Speech Correction principles and methods. 5 ed., Englewood Cliffs, New Jersey Prentice-Hall, 1972.
____________. The nature of stuttering. Englewood Cliffs, New Jersey Prentice-Hall, 1982.
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