A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO E AUTORIA NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA |
Autores: |
Clay Rienzo Balieiro - PUCSP, CNPQ Maria Cecília Bonini Trenche - PUCSP, CNPQ Luisa Barzaghi-Ficker - PUCSP, CNPQ Cristiane Mori-de Angelis - PUCSP, CNPQ |
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Os estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Métodos e Processos Clínico terapêuticos em Fonoaudiologia, cadastrado no CNPq, têm procurado mudar o foco de discussão sobre a linguagem da criança com deficiência auditiva, demonstrando a importância da escrita na constituição de sua linguagem.
A aquisição da língua escrita por crianças surdas tem sido um grande desafio para os profissionais implicados com a questão da linguagem e de pessoas com deficiência de audição.
As dificuldades encontradas na educação da criança com deficiência auditiva, especialmente em relação ao domínio da língua escrita, têm sido atribuídas às modalidades de inserção na língua. As mudanças ocorridas, ao longo da história, do Oralismo à Comunicação Total ou Bimodalismo, do Bimodalismo ao Bilingüismo decorreram e se justificaram, em parte, devido aos níveis insatisfatórios de leitura e escrita atingidos pela maioria dos alunos com deficiência de audição.
É fato que as implicações da deficiência auditiva / surdez - alterações perceptivas, alterações no processo de interlocução, número menor de oportunidades de interlocução, exclusão dos meios de comunicação, dentre outros - interferem efetivamente na constituição do sujeito e sua linguagem, estendendo-se também à aquisição da língua escrita. Alguns estudos sobre as implicações da deficiência auditiva no desenvolvimento da criança demonstram a discrepância existente entre as habilidades de leitura e escrita de sujeitos ouvintes e de sujeitos surdos, o que é utilizado como parâmetro de desenvolvimento e de medida da defasagem desses sujeitos. Em geral, os autores que estudam os processos de leitura e escrita em surdos apontam as deficiências lingüísticas encontradas focalizando principalmente as dificuldades de compreenderem novos contextos e sentidos.
Nossa experiência clínica, no entanto, tem demonstrado que muitos sujeitos surdos produzem leitura e escrita em níveis que indicam sua capacidade em fazer inferências e construírem sentidos, superando as dificuldades comumente descritas na literatura. Além disso, no enquadre clínico, o trabalho com a escrita, visto para além das deficiências lingüísticas, ou seja, como um trabalho na e com a linguagem tem sido um lugar possível de constituição do sujeito e sua linguagem (Balieiro, 2000). É por isso que temos enfatizado que a escrita deve ocupar um lugar importante no processo terapêutico de crianças surdas / deficientes auditivas. As condições de produção da escrita (em que condições e para quem se escreve) e a posição de interlocução ou mediação do terapeuta trabalhando sobre um processo e não sobre um produto favorecem a produção de sentidos a partir da língua escrita. Temos por isso proposto que na clínica fonoaudiológica sejam articuladas condições de produção e prática da escrita.
Segundo Trenche (2001), a Fonoaudiologia, por ser um campo de atuação clínica, exige um processo de permanente investigação, fazendo com que terapia e pesquisa se transformem em atividades interligadas, levando conseqüentemente ao aprimoramento dessa prática. É nesse sentido que temos direcionado nossa atuação clínica e de pesquisa.
Quanto à pesquisa, um dos focos dos trabalhos em linguagem são as questões referentes à leitura e escrita de pessoas surdas, norteadas por conceitos teóricos da Análise de Discurso de linha francesa.
Quanto à atuação clínica, o trabalho no campo da escrita com crianças deficientes auditivas tem como referencial a perspectiva discursiva em trabalhos de linguagem, visando produzir leituras com vistas à aquisição de elementos pré-construídos, melhor dizendo, à memória discursiva da língua portuguesa. As atividades desenvolvidas no espaço da clínica fonoaudiológica procuram privilegiar a criação de situações e de condições para que se mantenha a articulação entre os textos lidos (interdiscursividade), colaborando na construção de uma memória discursiva relativa à língua. Ainda, procura-se privilegiar as diferentes posições enunciativas que se assume quando se lê e quando se escreve. Para isso são criadas situações nas quais as crianças são incentivadas a ler, contar, comentar histórias lidas e também a produzirem histórias para serem lidas por outros leitores, garantindo, assim, as possibilidades de circulação e publicação.
Além dos pressupostos acima descritos, a preocupação com o Discurso da Escrita em oposição ao discurso pedagógico (conforme proposto por Gallo, 1995) faz com a proposta sempre seja cercada da idéia do “escrever para publicar”, uma vez que essa condição de produção favorece que se trabalhe a função – autor. O papel de parceiro do terapeuta no processo de produção de leitura e de escrita tem sido fundamental em todo esse processo.
Entretanto, não bastam as condições de produção, no sentido de inserir a produção de leitura ou escrita em instituições produtoras desse discurso. O ponto nevrálgico é a situação discursiva criada e que funciona como ponto de partida para a produção da escrita (o gibi, o livro, a revista, o texto teatral).
A situação discursiva pode ser criada, a nosso ver, a partir da negociação de seus parâmetros constituintes, quais sejam, o enunciador, o co-enunciador, a instituição social e o objetivo. O enunciador refere-se à posição a partir da qual o sujeito vai enunciar e que determinará a perspectiva da autoria do texto (cronista, jornalista, humorista etc.); o co-enunciador diz respeito à representação que o enunciador faz de seu público-leitor e implica, portanto, uma apreciação dos conhecimentos compartilhados que eles têm ou não a respeito do tema que será tramado. Esta é uma etapa fundamental da produção textual, uma vez que exige do autor uma correta e precisa antecipação do que precisará ou não ser explicitado no texto e sob qual repertório lingüístico. A instituição diz respeito ao lugar social sob o qual o texto circulará e determina o que é dizível ou não (e como) naquele texto. Por fim, cabe ponderar sobre o objetivo, ou seja, que efeitos de sentido o autor pretende alcançar.
Além da situação discursiva, o sujeito deve, também, mobilizar os conteúdos sobre os quais tratará. Porém, de nosso ponto de vista, não se trata de “propor um tema” (como é comum nas salas escolares), mas inserir a criança ou o jovem em situações discursivas de forma a mobilizar o interdiscurso. São fatos vividos, fatos narrados, sonhos, desejos, novelas, filmes, personagens diversos do cotidiano, de contos infantis e de romances que ocupam uma posição “já-determinada” que tem favorecido a produção do discurso, o tecer a trama de uma história, a mobilização do interdiscurso, a construção do intradiscurso, o efeito-autor e a assunção da autoria.
Para ilustrar o que vem sendo dito e articular ao papel de parceiro assumido pelo terapeuta os conceitos de situação discursiva, condições de produção do discurso da escrita e interdiscurso, trazemos alguns recortes de processos vividos na clínica fonoaudiológica, a partir da apresentação de situações / casos clínicos em que sujeitos com resistência para escrever puderam tornar-se autores.
Os resultados do trabalho desenvolvido no contexto descrito apontam para o “aprendizado da língua escrita”, cujo reflexo se deixa ver na linguagem de cada sujeito.
Referências Bibliográficas
Balieiro, C R – Vamos publicar um livro? A pessoa com deficiência auditiva e a escrita na clínica fonoaudiológica (tese doutorado), Distúrbios da Comunicação Humana, UNIFESP, 2000.
Balieiro, C R, Gallo, S L - Escrita e surdez: uma proposta discursiva. In: Linguagem escrita, São Paulo: Editora Plexus, 2002
Gallo, S L - Discurso da Escrita e Ensino. 2a. ed. Campinas, Unicamp. 1995.
Trenche, M C B – Relatórios andamento da pesquisa: “A construção da memória discursiva e a produção de leitura em terapia de linguagem com crianças surdas / deficientes auditivas”, 2001 a 2004. |
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