VOZ E PSICANÁLISE: INTERFACES
Susana Pimentel Pinto Giannini
Coordenador(a)
Instituição: HSPM / PUC-SP
 
A parceria da Fonoaudiologia com a Psicanálise está cada vez mais presente, tanto no âmbito teórico quanto no terapêutico, especialmente pela contribuição da psicanálise para questões cotidianas da clínica terapêutica. O fonoaudiólogo percebe que a técnica de que dispõe em sua abordagem é, muitas vezes, insuficiente para dar conta da demanda do sujeito que se apresenta com alteração vocal. Em minha experiência não foi diferente. Desde que me formei, exerci atividade clínica, sempre com preocupação de atualizar-me nos aspectos técnico-científicos que julgava necessários para a realização de um bom atendimento. Mas foi exatamente no trabalho clínico que pude voltar minha atenção para o sujeito que estava ali na frente. Enquanto o atendia, percebia que, mais do que desenvolver uma boa voz, desejava compreender seu sofrimento. Aos poucos, descobri que isso só seria possível se voltasse minha atenção para a relação terapêutica e fui deixando de lado a enorme preocupação em saber tudo para auxiliá-lo a se “corrigir”, utilizando técnicas e instrumentos, para começar a ouvi-lo. No início, ainda de forma incipiente e culpada. Hoje entendo que esse sentimento passava pela visão reinante na Fonoaudiologia de uma concepção positivista, onde seria melhor terapeuta quanto mais soubesse sobre determinada patologia vocal e as técnicas adequadas para superá-la. Creio que, então, não era terapeuta de fato: no momento em que comecei a ouvir o sujeito, iniciava um longo percurso, agora sim, de formação profissional. Trago minha história porque, tenho certeza, muitos fonoaudiólogos carregam dúvidas, angústias, conflitos em sua prática cotidiana ao perceberem que o sintoma de quem os procura não está desvinculado de sua história de vida e inserção social. Pinheiro (2001) diz que o “sujeito, ‘não tendo palavras’ para expressar as marcas que carrega, ‘é falado’ pela disfonia que apresenta”. Então, o processo terapêutico fonoaudiológico precisa compreender o discurso para além do que é dito e o sintoma, para além do que é mostrado no corpo, concebendo que qualquer manifestação corporal carrega um sentido simbólico (Giannini, 2003). Há necessidade de nos indagarmos como o sujeito que nos procura está se apropriando da função de produzir voz para buscar seus desejos e estabelecer laços. Mais do que um sintoma a ser eliminado, a alteração vocal é uma demanda a ser compreendida. A opção de eliminar fisiologicamente essa manifestação rompe a possibilidade de ressignificação, estanca o movimento. Märtz (1999) aponta a possibilidade de três perspectivas na terapia de voz: a clínico-organicista, centrada nos aspectos fisiológicos de sua produção, que busca a detecção e correção da falha que impede o funcionamento da fonação; a supra-segmental lingüística, na qual os aspectos prosódicos são considerados determinantes no teor expressivo do discurso, com trabalho assemelhado ao treino de oratória, exercitando as qualidades vocais do sujeito de forma a dar ênfase ou realçar o que é dito; e, por fim, a perspectiva clínico-terapêutica, onde deve haver “disponibilidade para o que o paciente diz e para o que ele não diz”, mas que transparece em sua voz. Afirma que, muitas vezes, ao tratar das alterações vocais, o fonoaudiólogo impõe ao paciente “uma melhor forma de dizer antes mesmo das palavras soarem”. De fato, freqüentemente vemos que a mudança na qualidade vocal não significa alívio na angústia de quem apresenta a alteração vocal. Ao compreendermos que este sujeito que nos procura carrega um significado simbólico em seu pedido, notamos a necessidade de abrirmo-nos para escuta, mas ainda sem saber bem o que fazer com o que escutamos... Percebemos, como diz Dejours (2004), que “não basta ouvir para que se produza o milagre de aparecimento do sentido”. Sentido, aqui entendido como o que afeta, que funda a possibilidade de movimento, de mutação, aquilo que é passível de mudança. Dessa forma, a terapia fonoaudiológica fica, muitas vezes, condicionada à procura de acompanhamento psicoterapêutico. Ou seja, a busca por este recurso não é uma demanda espontânea ou construída a partir do que o sujeito vivencia na clínica fonoaudiológica, mas solicitação do fonoaudiólogo que necessita de auxílio para dar conta do que é psíquico. O que é considerado da ordem do psiquismo é entendido como “tudo o que não é orgânico” (Pinheiro, 2001) e compromete a evolução da terapia, em especial nas abordagens que envolvem mudanças de comportamento. Confunde-se termos como aspectos psicológicos, estado emocional, alterações psíquicas, enfim, entende-se aqui qualquer tipo de abordagem que considere a dimensão psíquica, independente das suas diferenças epistemológicas e conceituais. É comum encontrarmos na literatura da área de voz estudos que propõem apontar quadros mentais e características pessoais a partir das manifestações vocais apresentadas. De certa forma, esta situação alimenta a dicotomia corpo e mente e contribui para que o fonoaudiólogo privilegie a eliminação do sintoma, manifesto pelos sinais, sem que haja questionamento do sentido da doença em sua história de vida. A interlocução com a Psicanálise vem ampliar o nosso olhar, ao mostrar que é no encontro entre seu corpo, sua história de vida, hábitos, cultura, que o sujeito molda seus modos de ser, sua subjetividade e, então, seu modo de afetar-se à doença em um processo singular, dinâmico e complexo. Para que a própria clínica fonoaudiológica seja capaz de propiciar ao sujeito buscar o sentido que o transtorno vocal carrega, o fonoaudiólogo precisa constituir-se como terapeuta, acolhendo os transtornos vocais não como meras falhas técnicas, mas como sinalização de dor. Isto só poderá ser alcançado a partir da ressignificação da noção de corpo em Fonoaudiologia, de modo a estabelecer uma relação não dicotômica entre corpo e mente, por meio da busca de referencial teórico que dê sustentação à complexidade inerente ao desenvolvimento do sintoma vocal. Amaral (2004) aponta que a transformação do paradigma convencional da Fonoaudiologia só será possível a partir da “articulação entre técnicas fonoaudiológicas específicas às peculiaridades do sujeito e a consideração dos aspectos psíquicos envolvidos na manifestação dos sintomas manifestos”. Trata-se, portanto, de estabelecer uma interlocução com a Psicanálise, de forma a favorecer a atuação sem afastar-se do objeto da Fonoaudiologia. Ao discorrer sobre minha trajetória profissional, percebo que o encontro com esta ciência trouxe a possibilidade de compreender que o espaço terapêutico pode e deve servir como lugar “para se colocar em palavras tudo aquilo a que o indivíduo se apega, para que seja superado, para que não tenha mais necessidade disso e para que o desejo se renove numa direção mais prazerosa que o sofrimento. Falar a verdade permite ao sujeito constituir-se e humanizar-se” (Dolto, 1999). Nesse sentido, a clínica fonoaudiológica poderá abrir espaço para a possibilidade de transformar o sofrimento em palavras, onde o sujeito terá a possibilidade de renovar o desejo e reconstruir sua história. Amaral, VRP Queixa x demanda: refexões sobre os funcionamentos orgânico, energético e simbólico do corpo na dinâmica vocal.São Paulo: 2004. Monografia (Especialização). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dejours, C Addendum In: Lancman S, Sznelwar, LI Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004 Dolto, F. Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Giannini, SPP Histórias que fazem sentidos: as sobredeterminações das alterações vocais do professor. São Paulo: 2003. Dissertação (Mestrado em Fonoaudiologia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Märtz, L. Algumas reflexões sobre a terapia de voz. In: Revista Distúrbios da Comunicação. São Paulo: Educ, 1999. Pinheiro, MG Considerações sobre voz e psiquismo: abordagem fonoaudiológica. São Paulo: 2001. Monografia (Especialização). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
 
Contato: ppgiannini@uol.com.br
 

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