Código: PPF0064
REPOUSO E TEMPO DE REAÇÃO PARA FALA: COMPARAÇÃO ENTRE GAGOS E FLUENTES
 
Autores: Fernanda Chiarion Sassi, Fabíola Juste
Instituição: USP
 
Introdução

Diversos autores têm sugerido que a gagueira pode resultar de dificuldades com a temporalização dos movimentos da fala, ou, de maneira mais geral, de padrões temporais alterados, tanto motores quanto sensoriais (ex. De Nil e Abbs, 1991; Caruso, 2000; De Nil et al., 2001; Bosshardt et al., 2002; Andrade, 2004).

A gagueira pode ser decorrente de irregularidades periódicas na temporalização dos movimentos de fala (Zimmermann, 1980). Freqüentemente é observado que a tensão muscular prévia à fala é elevada (Freeman e Ushijima, 1978), o que dificulta o ajuste, altamente preciso, necessário para o início desta, prejudicando a performance de fala do indivíduo gago (Salmelin et al., 2000).

O objetivo do presente trabalho foi verificar o repouso e o tempo de reação para fala fluente de indivíduos sem e com gagueira. As hipóteses de pesquisa foram:

H1 – a tensão muscular de repouso de gagos é mais elevada que dos fluentes;

H2 – o tempo de latência para início da fala de gagos é maior do que a de fluentes;

H3 – a atividade muscular de fala de indivíduos gagos é mais elevada que a de fluentes;

H4 – existe correlação positiva entre o tempo de latência para o início da fala e a atividade muscular para fala em ambos os grupos – quanto maior a latência, maior a atividade muscular.


Método

Participantes
Este estudo recebeu a aprovação da Comissão de Ética da Instituição (CAPPesq – HCFMUSP 1021/03) e o consentimento pós-esclarecido foi obtido de todos os participantes.

Participaram deste estudo 22 indivíduos adultos divididos em dois grupos: GI com 11 indivíduos fluentes, 4 do sexo feminino e 7 do sexo masculino, com idade média de 31:5 anos e sem histórico de qualquer déficit de comunicação, perda auditiva, distúrbio neurológico e/ou cognitivo; GII com 11 indivíduos gagos, 4 do sexo feminino e 7 do sexo masculino, com idade média de 25:1 anos, sem qualquer outro déficit de comunicação associado, perda auditiva, distúrbio neurológico e/ou cognitivo e sem atendimento fonoaudiológico prévio.

O critério adotado para inclusão nos grupos foi:

a) GI - apresentar até 10 pontos no Stuttering Severity Instrument (SSI-3 – Riley, 1994), ou seja, não apresentar gravidade para a gagueira;
b) GII – apresentar 11 pontos ou mais no SSI, ou seja, apresentar pelo menos grau Muito Leve para gagueira.


Material
Os registros eletromiográficos foram coletados utilizando um equipamento de quatro canais, com placa de conversão analógico/digital e um programa de coleta e processamento de sinais (plataforma Windows) desenvolvido pela EMG System do Brasil e instalado em um computador Dell Dimension 2400 (processador Pentium 4, 2.4 GHZ).

Previamente à coleta dos dados, o equipamento foi calibrado segundo as seguintes especificações:

. freqüência de amostragem por canal de 1000Hz;
. resolução da placa de conversão Analógico/Digital de 12 bits;
. filtro passa alta de 20 Hz;
. filtro passa baixa de 500 Hz;
. ganho total de 1000 (50 dos canais da EMG e 20 dos eletrodos ativos).

A coleta dos dados foi realizada utilizando eletrodos ativos com a seguinte configuração:
. pré amplificador com ganho 20;
. amplificador diferencial com entrada bipolar;
. cabo flexível de 2 metros, blindado.

Os eletrodos utilizados foram do tipo descartável Medtrace Mini Ag/AgCl (10mm de diâmetro) fixado ao cabo por botão de pressão.


Procedimento

Foi utilizado apenas um canal do equipamento eletromiográfico. A atividade muscular foi captada pelo eletrodo de superfície fixado na porção média da região perioral inferior (orbicular inferior), 2mm abaixo da margem livre do lábio. Os eletrodos foram fixados de tal maneira que a distância entre os mesmos foi de aproximadamente 10mm. Previamente ao posicionamento dos eletrodos, a pele foi limpa com álcool 96º GL. Os eletrodos foram fixados à pele com fita adesiva do tipo transpore (3M).

Antes de iniciar a coleta dos dados, foi solicitado aos participantes que sentassem confortavelmente em uma cadeira com a cabeça orientada segundo o plano horizontal de Frankfort, paralelo ao solo, com os braços apoiados na coxa. O eletrodo referência foi colocado no pulso direito.

Os procedimentos adotados para a coleta dos dados foram:

a) repouso - cada participante foi instruído a permanecer o mais relaxado possível durante 1 minuto. Após esse tempo iniciou-se a coleta dos dados, quando foi gravado 5 segundos da atividade muscular de cada participante para posterior análise.

b) tempo de reação para fala – cada participante foi instruído a repetir a frase “Barco na água” (Sassi e Andrade, 2004) tão logo ouvisse o sinal sonoro – um bip agudo - indicando o acionamento do cronômetro. Foram aceitas somente as produções fluentes, ou seja, aquelas livres de rupturas. Dessa forma, para alguns participantes de GII foram necessárias diversas repetições até que se obtivesse uma fala fluente. O início da gravação da atividade muscular coincidiu com o acionamento do cronômetro. A repetição de cada indivíduo foi gravada pelo equipamento em janelas de 5 segundos.

Análise dos resultados

Foi analisado um total de 44 trechos de atividade eletromiográfica. Os resultados coletados foram quantificados em raiz quadrada da média (RMS) pelo próprio programa de aquisição de dados e expresso em microvolts (uV).

Para a situação de repouso, os valores obtidos representam a média (RMS) da atividade eletromiográfica observada em 5 segundos. O tempo de reação para fala foi obtido pelo cronômetro digital, que marcou o intervalo de tempo entre o comando para iniciar a fala e o início desta. Também foi analisada a ativação muscular obtida durante a repetição da frase alvo. Para tanto, utilizou-se o marcador de intervalos do próprio programa de análise dos dados a fim de selecionar o trecho de informações representativos do início e fim da contração muscular (situação on e off). Os valores obtidos representam a média (RMS) da atividade eletromiográfica obtida durante a emissão da frase alvo.

Observou-se que para alguns participantes, não foi possível diferenciar as situações on e off daquela que seria a atividade eletromiográfica de repouso. Para esses casos, selecionou-se os primeiros 2 segundos da atividade muscular, descartando-se o tempo utilizado para iniciar a fala. O valor RMS obtido nesse trecho foi registrado como sendo a tensão muscular da fala.


Resultados
Para comparação entre os grupos foi utilizado o teste estatístico não paramétrico de Mann-Whitney (p≤0,05), uma vez que as variáveis não apresentam distribuição normal. Para correlacionar os dados de latência e da atividade eletromiográfica (EMG) para fala foi utilizado o teste de Correlação de Pearson (p≤0,05), os valores discrepantes foram desconsiderados.

Table 1. Análise descritiva do repouso (uV)
Média DP Mediana Coef. de variação P valor
GI 16,46 3,66 16,81 22,21 0,02*
GII 26,65 10,98 28,25 41,19

Table 2. Análise descritiva da latência (ms)
Média DP Mediana Coef. de variação P valor
GI 82,18 8,52 83,00 10,37 0,32
GII 97,7 40,7 99,00 41,69



Table 3. Análise descritiva da EMG (uV)
Média DP Mediana Coef. de variação P valor
GI 68,45 25,10 64,24 36,67 0,32
GII 75,90 32,35 71,30 42,62

Tabela 4. Correlação entre latência e EMG
r P valor
GI 0,218 0,60
GII 0,716 0,03*


Conclusão
H1 – CONFIRMADA. Os grupos se diferenciaram significativamente quanto ou repouso, sendo que para GII este foi mais elevado. Além disso, para GII não foi observada uma uniformidade dos dados. Os resultados, para este grupo, quanto ao repouso, foram aproximadamente duas vezes mais dispersos que para GI.

H2 – NÃO CONFIRMADA. Os grupos não se diferenciaram significativamente quanto à latência. Contudo, observou-se novamente uma não uniformidade dos dados para GII. Os resultados referentes à latência para esse grupo foram quatro vezes mais dispersos quando comparados a GI.

H3 – NÃO CONFIRMADA. Os grupos não se diferenciaram significativamente quanto à atividade muscular de fala, nem quanto à dispersão dos dados.

H4 – PARCIALMENTE CONFIRMADA. Houve uma correlação fortemente positiva entre o tempo de latência e a atividade muscular para a fala somente para GII. Para este grupo, quanto maior a latência, maior a atividade eletromiográfica.

Os dados da pesquisa corroboram com os achados Bosshardt et al. (2002) que não encontraram diferenças para o tempo de latência de fala entre gagos e fluente e com os dados de Kleinow e Smith (2000) que encontraram maior variabilidade dos padrões temporais em indivíduos gagos. Essa variabilidade, ilustrada pela dispersão dos dados, pode ser indicativa que o sistema de fala dos indivíduos com gagueira necessita de ensaios prévios para atingir o padrão fluente.

A atividade muscular de repouso elevada, observada para o grupo de gagos, corrobora com os achados de McClean (1987 e 1996), apontando que altos níveis de entrada nas vias dos mecanoceptores, em momentos inadequados (ex. previamente a fala), podem ter efeito de ruptura nos padrões da atividade neuromotora da fala.

A correlação positiva entre o tempo de reação para fala e a atividade muscular para fala, encontrada para o grupo gago, pode ser indicativa do impacto de uma temporalização pobre sob o sistema motor. Diversos autores apontam que o aumento da tensão torna a fala mais propensa a rupturas.

Dessa forma, tratamentos que visem à adequação do repouso e favoreçam a temporalização da fala devem promover a fluência.
 
Andrade CRF de. Abordagem neurolingüística e motora da gagueira. In: Ferreira LP, Béfi-Lopes D, Limongi SCO (Orgs.).Tratado de Fonoaudiologia, São Paulo: Roca, 2004. p. 1001-16.

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Contato: fsassi@usp.br
 

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