Código: PPL1336
ANÁLISE DO PARÂMETRO ACÚSTICO DE DURAÇÃO NA IDENTIFICAÇÃO DO TRAÇO DE SONORIDADE
 
Autores: Haydée Fiszbein Wertzner , Adriana Limongeli Gurgueira , Luciana de Oliveira Pagan
Instituição: DEPARTAMENTO DE FISIOTERAPIA, FONOAUDIOLOGIA E TERAPIA OCUPACIONAL DA FACULDADE MEDICINA USP
 

A fonologia trabalha com as funções dos sons da fala com o objetivo de determinar as distinções fonéticas que em uma determinada língua possuem valor diferencial (Jackobson,1967; Fey,1992).
Nesta concepção, o transtorno fonológico pode ser definido como uma alteração caracterizada por substituição, omissão e/ou distorção dos sons da fala presente no sistema fonológico de um indivíduo. Ingram(1976) destaca que tais alterações podem ser decorrentes de dificuldades com a organização da regra fonológica, a percepção auditiva dos sons e/ou sua produção.
A percepção dos sons da fala é algo presente e necessário durante as atividades diárias das pessoas que, como ouvintes, precisam se comunicar com outras pessoas. Segundo Schouten, Gerrits e van Hessen(2003), o número de fonemas que se tem que identificar é limitado, porém, as variações acústicas ocorrentes na interpretação de cada um deles são muito grandes.
As propriedades acústicas dos sons da fala (variações de intensidade, freqüência e duração) são importantes para a organização desses sons em classes sendo essa classificação fundamental para o processamento da fala (Stevens,1980; Nguyen e Hawkins,2003).
Um dos grandes desafios no aprendizado da linguagem oral é identificar os fatores que ajudem as crianças a superarem suas dificuldades nesta área, dentre eles, os padrões de duração dos eventos de fala (Kello,2003).
Os estudos que envolvem a duração dos sons fricativos surdos e sonoros indicam que, em geral, os sons surdos apresentam maior duração que os sonoros (Denes,1955; Baum e Blumstein,1987; Borden,Harris e Raphael,1994). Entretanto, estes mesmos estudos apresentam resultados contraditórios em relação ao uso da duração como pista distintiva do traço de sonoridade.
A partir disso, o objetivo deste trabalho foi verificar a influência deste parâmetro acústico na percepção de sons fricativos surdos e sonoros do português brasileiro.
Para isto, foram apresentadas emissões das palavras fila e vila a 22 adultos com idade média de 19:5 anos alunos do 1o ano do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sem queixa de alteração auditiva. Nenhum deles havia participado anteriormente de algum tipo de pesquisa relacionada à fonoaudiologia.
Os estímulos foram selecionados a partir da análise das três produções de cada palavra, realizadas por oito meninos com idade média de 8:0 anos, sendo três com processo fonológico de ensurdecimento de fricativas e cinco sem alterações fonológicas.
A identificação do processo fonológico de ensurdecimento foi realizada inicialmente a partir da análise auditiva da segunda e terceira autoras. Em seguida, as emissões foram gravadas e analisadas no Computerized Speech Laboratory (CSL-4300B) sendo obtido o espectrograma, no qual foi verificada a presença ou ausência da barra de sonoridade, além das medidas de duração dos sons /f/ e /v/ de cada repetição. Dentre as 48 produções analisadas foram escolhidas 12: três filas e três vilas emitidas por crianças sem alteração e três filas e três vilas emitidas por crianças com processo de ensurdecimento. Foram calculadas as diferenças entre as durações dos sons de cada repetição para cada sujeito. Selecionaram-se três seqüências de repetições de crianças com processo de ensurdecimento e três sem, nas quais as diferenças de duração entre /f/ e /v/ variaram. Os valores podem ser observados no Quadro 1.

Quadro 1: Estímulos selecionados para apresentação- tempo em ms

Sujeito
Fila
Vila
Diferença
Normal
246
84
162
máxima
Normal
256
191
65
média
Normal
215
189
26
mínima
Patológico
119
57
62
máxima
Patológico
108
69
39
média
Patológico
286
275
11
mínima

Após a seleção, as produções foram gravadas em ordens diferentes em três CDs, constituindo três listas (Quadro 2). Assim, oito indivíduos ouviram a lista1, sete a lista2 e sete a lista3. Essas foram apresentadas individualmente aos sujeitos por meio de um fone de ouvido, acoplado a um notebook da marca Toshiba(2065CDS), em sala acusticamente tratada. A intensidade de apresentação dos estímulos foi padronizada. Após cada palavra, houve um intervalo de cinco segundos para que os sujeitos registrassem a palavra exatamente da maneira como ouviram.

Lista 1
Lista 2
Lista 3
Sujeito
Palavra
Tempo*
Sujeito
Palavra
Tempo*
Sujeito
Palavra
Tempo*
Normal
Fila
256
Normal
Vila
84
Patológico
Vila
69
Patológico
Vila
69
Patológico
Fila
119
Normal
Fila
215
Patológico
Fila
108
Normal
Fila
256
Patológico
Fila
286
Normal
Vila
84
Patológico
Vila
275
Normal
Vila
84
Patológico
Fila
286
Normal
Fila
215
Patológico
Fila
108
Normal
Fila
246
Normal
Vila
191
Patológico
Vila
275
Normal
Vila
191
Patológico
Fila
286
Normal
Vila
189
Patológico
Vila
275
Patológico
Vila
57
Normal
Fila
246
Normal
Fila
215
Normal
Fila
246
Patológico
Vila
57
Patológico
Fila
119
Patológico
Vila
69
Normal
Fila
256
Patológico
Vila
57
Normal
Vila
189
Patológico
Fila
119
Normal
Vila
189
Patológico
Fila
108
Normal
Vila
191

* em ms.

Os resultados foram analisados quanto ao número de acertos (identificação correta do som), número de erros (identificação do som como seu cognato surdo ou sonoro) e número de substituição por outros sons (outro som que não seu cognato). É importante salientar que o som /v/ produzido pelos sujeitos com transtorno fonológico foi ensurdecido e que, portanto, sua identificação foi considerada correta quando o ouvinte identificou-o como /f/ e errada, quando o identificou como /v/.
Em termos gerais, os ouvintes participantes da pesquisa tiveram mais acertos na identificação das palavras produzidas pelos sujeitos sem transtorno fonológico.
A análise inferencial foi feita pelo Teste de Igualdade de Duas Proporções (Spiegel,1993; Fonseca e Martins,1996) e o nível de significância adotado foi de 0,08(n sig.0,08) devido a baixa amostragem.
Entre os falantes típicos, a identificação correta do som [f] de /fila/ não evidenciou diferença significante (p=0,709). Porém, as comparações das identificações como substituições por outros entre as durações 256ms e 246ms indicou diferença significante (p=0,036) sendo que os ouvintes erroneamente identificaram a palavra /fila/(f=256ms) como /pila/. Isto pode ser explicado pelo efeito de lista, já que somente os sujeitos que ouviram a terceira lista cometeram este erro. Nesta lista, a palavra anterior à /fila/ (/f/=256ms) era a palavra /vila/ produzida por um sujeito patológico com duração do /v/ ensurdecido de 57ms, e que também havia sido identificada como /pila/ pelos ouvintes.
Ainda para as crianças típicas, observou-se diferença significante quando foram comparadas as identificações da palavra vila com duração do som /v/ de 191ms e de 84ms, em relação aos erros (p=0,079) e à substituição por outros (p=0,073). O som /v/ de maior duração foi identificado pelos ouvintes como /f/ e, a palavra transcrita como /fila/. Já o /v/ produzido com menor duração, foi identificado de duas formas diferentes, como /p/ sendo a palavra transcrita como /pila/, ou como /l/, sendo transcrita como /lila/.
Esses resultados indicam que, pelo fato do /v/ de maior duração ter apresentado valor semelhante à duração dos sons surdos que são, no geral mais longos, (Denes, 1955; Baum e Blumstein, 1987; Borden, Harris e Raphael, 1994) eles foram erroneamente identificados pelos ouvintes como seu cognato surdo. Já o som /v/ de menor duração apresentou maior número de substituições pelos sons /p/ ou /l/, mostrando que uma diminuição na duração do som fricativo tende a ser percebido como um outro som que não o seu cognato surdo.
Na análise da percepção dos sons emitidos pelos falantes com transtorno fonológico no som /f/(produzido na palavra /fila/) houve diferença significante quanto ao número de acertos (p<0,001) na comparação entre as três durações do /f/ (286ms,119ms e 108ms). Quanto maior a duração do /f/, os ouvintes tiveram menor dificuldade em identificar a palavra como /fila/, uma vez que o valor está mais próximo ao dos falantes típicos. Inversamente, quanto menor a duração do som /f/ da palavra /fila/, maior o número de erros na sua identificação, sendo a palavra /fila/ identificada como /vila/. Esses achados mostram que o som /f/ realmente requer uma maior duração para ser identificado como tal e que a diminuição deste parâmetro acústico altera sua percepção em relação à sonoridade.
Em relação à identificação do /v/, na palavra /vila/, emitida pelos falantes com transtorno fonológico como /fila/, verificou-se diferença significante quando comparadas as produções do /v/ ensurdecido de maior duração (275ms) com as durações de 69ms(p=0,035) e de 57ms(p=0,015) mostrando que os sujeitos tiveram maior facilidade para identificá-lo de maneira correta, ou seja, como surdo, quanto maior sua duração. Novamente, quanto maior a duração, mais facilmente um som é identificado como surdo, ao passo que, quando sua duração diminui, a tendência do ouvinte é identificá-lo como sonoro ou como outro som.
Dessa forma, os resultados apresentados mostram que o parâmetro acústico duração pode ser uma pista importante na identificação dos sons surdos e sonoros, uma vez que ouvintes não treinados apresentaram dificuldade na identificação dos sons /f/ e /v/ de diferentes durações. Esses dados ressaltam a importância da realização de procedimentos objetivos que busquem analisar os sons produzidos de maneira mais fidedigna.
Além disso, na medida em que grande parte dos diagnósticos fonoaudiológicos é realizada com apoio na percepção do terapeuta, há necessidade de treinamento auditivo que auxilie na identificação correta dos sons. Com isso, a estruturação de procedimentos para a intervenção fonoaudiológica poderá ser realizada da maneira mais adequada.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUM, S.R. e BLUMSTEIN, S.E. Preliminary observations on the use of duration as a cue to syllable-initial fricative consonant voicing in English. Journal of the Acoustical Society of America, 82(3):1073-1077, 1987.
BORDEN, G.J.; HARRIS, K.S. E RAPHAEL, L.J. Speech science primer: phisiology, acoustics, and perception of speech. 3rd ed., USA: Williams & Wilkins, 1994.
DENES, P. Effect of duration on the perception of voicing. Journal of the Acoustical Society of America, 27(4):761-764, 1955.
FEY, M.E. Phonological assessment and treatment articulation and phonology: inextricable constructs in speech pathology. Language, Speech and Hearing Services in Schools, 23:225-32, 1992.
FONSECA, J.S. e MARTINS, G.A. Curso de Estatística. Editora Atlas, 6ª ed., São Paulo, 1996. 320p.
INGRAM, D. Phonological disability in children. Edward Arnold, London, 1976.
JACKOBSON, R. Fonema e Fonologia-Ensaios. Tradução de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1967.
KELLO, C.T. Patterns of timing in the acquisition, perception, and production of speech. Journal of Phonetics 31:619-626, 2003.
NGUYEN, N. e HAWKINS, S. Temporal integration in the perception of speech: introduction. Journal of Phonetics, 31: 279-287, 2003.
SCHOUTEN, B.; GERRITS, E. e VAN HESSEN, A. The end of categorical perception as we know it. Speech Communication 41:71-80, 2003.
SOROKIN, V.N. Some coding properties of speech. Speech Communication, 40:409-423, 2003.
SPIEGEL, M.R. Estatística Coleção Schaum. Editora Afiliada, 3ª ed., São Paulo, 1993. 640p.
STEVENS, K.N. Acousitc correlates of same phonetic categories. Journal of the Acoustical Society of America, 68(3):836-842, 1980.

 
Contato: dricalim@usp.br
 

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