Código: PDF0352
A GAGUEIRA E SUA TERAPêUTICA: ESTUDO DISCURSIVO DA ESCRITA COMO POSSIBILIDADE DE RECURSO TERAPêUTICO |
|
Autores: Renata Chrystina Bianchi de Barros |
Instituição: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS |
|
Saber se a prática fonoaudiológica realizada com sujeitos gagos atinge ou não aos objetivos propostos foi uma pergunta importante e que motivou a realização dessa pesquisa, assim como, saber o porquê de em todas as ações realizadas em sessões terapêuticas com sujeitos que apresentavam queixa de alteração de motricidade oral, voz e audição, era necessário ter clareza dos objetivos propostos para aplicá-las e ao contrário, nunca se tinha uma explicação, no mínimo palpável, para a utilização da escrita com sujeitos gagos? Quando da minha entrada na Análise de Discurso deparei-me com uma outra consideração teórica de sujeito, muito diferente da linha que eu percorria numa concepção sócio-histórica. Não foi confortável assimilar esse sujeito assujeitado1 (pela língua e pela história) considerando que todo sujeito já é sujeito porque é interpelado pela ideologia. Após o contato mais aprofundado com essa disciplina e mediante a constatação desse novo sujeito, tudo o que vinha sendo dito sobre gagueira e sua terapêutica não era suficiente para explicar a utilização da escrita como recurso terapêutico. Considerando que as noções e concepções da Análise do Discurso seriam fundamentais para essa compreensão, me mantive nesse espaço teórico para melhor apreensão das condições materiais e simbólicas da gagueira. Nesse percurso, consideramos a historicidade da fonoaudiologia para saber da sua constituição enquanto campo de conhecimento. A realização desse estudo permitiu-nos perceber a íntima relação de dependência ideológica que a fonoaudiologia mantém com outras disciplinas, como a medicina, a psicologia e a lingüística, mantendo-se num campo de sentido da dicotomia saúde-doença para a execução da sua prática e elaboração da sua teoria enquanto campo de conhecimento. Compreendemos, assim, a forma que vêm sendo realizados os processos terapêuticos com sujeitos que trazem para a clínica a queixa de gagueira, e também sobre a forma com que os fonoaudiólogos têm percebido o estatuto da escrita. Entendemos que a contribuição dos nossos estudos vem no sentido de dar maior visibilidade àquilo que é dos sentidos e da significação do sujeito, da fluência da linguagem, da escrita e da clínica fonoaudiológica. O sujeito gago – aquele que apresenta alteração na fluência – é concebido em diferentes versões na fonoaudiologia. Exemplificando, na fenomenologia2 o trabalho terapêutico está estruturado de modo a dissolver os aspectos externos da gagueira com atividades que possibilitem ao sujeito a consciência de seu corpo e dos invólucros de tensão. Esse enfoque dá prioridade à eliminação da aparência externa da gagueira, não possibilitando atingir a questão principal da atuação frente à ocorrência dessa alteração que se faz, principalmente, na compreensão de como o sentido da palavra gagueira se realiza para o sujeito não-fluente – gago. Na teoria geneticista3 a gagueira é tida como a dificuldade ou a incapacidade do indivíduo conseguir a pronta recuperação dos sistemas neurais que estão em desacordo para a fala fluente e acabam por reduzir a língua e a fala ao que é anatômico, com suas conexões neurais (em bom ou mal estado) para se conseguir a fluência. O sujeito, assim, é apagado, reduzindo o espaço do processo terapêutico ao preenchimento de fichas protocolares para a mensuração do grau de risco para a gagueira. Na vertente da psicologia social4, 5, que vê a linguagem como um elemento mediador entre o homem e o mundo, a prática terapêutica proposta está fortemente ancorada ao estudo do movimento da consciência do sujeito, a fim de que se possa interferir terapeuticamente sobre ele, como se fosse possível a manipulação direta daquilo que comumente se entende por consciência. Já na psicanálise6 a escuta fonoaudiológica resulta em uma nova forma de perceber a linguagem além dos seus códigos, com a introdução do inconsciente nas investigações fonoaudiológicas, assumindo que o psiquismo imprime marcas nas formas do discurso, ou seja, é na fala que são evidenciados os sintomas daquilo que o aparelho psíquico pretende esconder/apagar. Nesse processo terapêutico fonoaudiológico, além das técnicas usualmente utilizadas para a tentativa da “cura”, o profissional estaria interpretando na transferência, a fim de que o paciente elabore o seu sintoma, isto é, conscientize-se dele. É oportuno, ainda, salientar que há tentativas de se pensar o processo terapêutico fonoaudiológico pela análise de discurso, porém esses trabalhos desencadeiam-se nos estudos da aquisição da linguagem7, afetada pela relação lingüística-psicanálise, ou a tentativa8 de se estabelecer relações entre a análise de discurso e pensadores como Bakhtin e Meira. Em referência mais específica aos nossos estudos, a proximidade com a análise de discurso no que diz respeito à relação sujeito, linguagem e escrita na terapêutica fonoaudiológica com sujeitos com alteração da fluência da linguagem provocou-nos para uma nova e diferente prática frente a esses sujeitos. Neste processo foi fundamental compreender e redefinir no espaço da fonoaudiologia a noção de sujeito, de clínica e de terapêutica com a escrita. Podemos assim dizer que a escrita é um modo do sujeito se organizar no espaço da fala, da própria escrita e do urbano, que se toma e é tomado como gago no espaço material da fala. É por esse espaço que irrompe os sentidos que estabelecem a desorganização materializada nos desconfortos audíveis e percebidos pelo sujeito: as hesitações, os bloqueios, as pausas, as retomadas e numa relação de reflexividade com a própria fala, o sujeito fica sempre na tentativa de re-dizer o já dito, ainda não dito. Sabemos que sujeito e sentido constituem-se ao mesmo tempo, na articulação da língua com a história, na consideração do imaginário e a ideologia9. A alteração de fluência da linguagem exerce um estatuto de visibilidade do sujeito frente a si mesmo e ao outro, e ao se experimentar na falha da fluência, atualiza o sentido, textualiza a memória, realiza um possível nessa falha que está na ordem do temporal, espacial e corporal; é uma quebra real e material na linearidade do discurso. O trabalho com a escrita no espaço da clínica – espaço físico-simbólico de provocação e reflexão sobre o fazer terapêutico – vai além daquilo que se possa pensar superficialmente como um recurso. A escrita é a instância material que possibilita ao sujeito, pela sua propriedade ilusória de fluência, se organizar e se manter no fio do discurso. |
|
1. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi (et al). 3ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
2. MEIRA, Isis M. Gagueira: do fato para o fenômeno. São Paulo: Cortez, 1983.
3. ANDRADE, Claudia R. Furquim de. Diagnóstico e intervenção precoce no tratamento das gagueiras infantis. Carapicuíba: Pró-Fono, 1999.
4. FRIEDMAN, Silvia. A construção do personagem bom falante.São Paulo: Summus, 1994.
5. FRIEDMAN, Silvia; MELO, Yara A. F. Sobre o desenvolvimento da linguagem e da gagueira. Mimeo, 1983.
6. CUNHA, Maria Claudia. Fonoaudiologia e psicanálise: a fronteira como território. São Paulo: Plexus, 1997.
7. AZEVEDO, Nádia P. G. Uma análise discursiva da gagueira: trajetórias de silenciamento e alienação na língua. Dissertação de Mestrado. PUC-SP, 2000.
8. FERRIOLLI, Beatriz H. V. M. A análise de discurso como proposta clínica fonoaudiológica nos casos de disfluência da fala. Relato de um caso. In: MEIRA, I. (org.) Tratando gagueira: diferentes abordagens. São Paulo: Cortez, 2002. pp.67-78.
9. ORLANDI, Eni P. Discurso e texto. Formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. |
|
Contato: barrosrenata@terra.com.br |
|

Imprimir Trabalho |

Imprimir Certificado Colorido |

Imprimir Certificado em Preto e Branco |
|