PARA FALAR COM UM DE NOSSOS ATENDENTES, DISQUE 9. - O SINTOMA NA VOZ, O SUJEITO PSÍQUICO E O LAÇO SOCIAL -
Julieta Jerusalinsky
Palestrante
 
Há pelo menos 100 anos, a psicanálise tem trazido testemunhos da implicação psíquica dos sintomas na voz. Exemplo disso são casos célebres, tais como o de Dora – a jovem que padecia de afonia durante as longas viagens de seu amado – ou o caso de Roselie H. – a jovem cantora cuja voz emudecia na execução de tons intermédios durante apresentações públicas. No desenrolar de tais casos Freud nos mostra o quanto a voz que falha pode constituir-se como uma manifestação somática do padecimento psíquico do sujeito. Tal padecimento tem origem em um conflito que não pôde ser representado e que comparece fazendo obstáculo ao funcionamento da voz. Daí a pertinência de interrogar o que esta voz que fracassa em sua execução nos diz de modo cifrado acerca do padecimento do sujeito. Trata-se de interrogar, para além do fracasso da função, o que pode ser escutado (nessa interface com a clínica psicanalítica) quando a voz falha. Recentemente, tivemos a oportunidade de abordar tal tema na mesa sobre “voz e subjetividade” durante a “quarta mostra de estudos e pesquisas sobre a voz da PUC_SP”. Debatemos, nessa ocasião, os modos de estabelecimento de uma prática interdisciplinar entre fonoaudiologia e psicanálise, situando a importância que tal prática, em lugar de estabelecer-se sobre a perspectiva de uma complementariedade promissora de todo saber, permita um exercício de interlocução na qual cada disciplina -não-toda em seu saber- seja atravessada pelos interrogantes que a outra levanta em sua especificidade. Nesse encontro, apontou-se a necessidade de articulação entre os trabalhos científicos epidemiológicos e aqueles trabalhos produzidos a partir da clínica com a voz – que acarretam a elaboração realizada a partir da terapêutica levada a cabo em função do padecimento de um paciente. Tal questão assume extrema relevância uma vez que os sintomas de voz que comparecem no caso a caso da clínica psicanalítica implicam um trabalho de escuta dos significantes que sustentam simbolicamente a vida do paciente e que, portanto, dão também lugar à produção de seu sintoma. No entanto, é preciso considerar que tais sintomas não se produzem de modo dissociado do social. A clínica mostra que, na singularidade da fala de cada paciente, comparece, por um certo viés, o sintoma social, uma vez que é também a esse Outro social que o sintoma do sujeito procura produzir resposta. Sem dúvida, as manifestações somáticas do padecimento psíquico do sujeito das quais nos fala Freud continuam a ser de grande incidência clínica, ainda que, na atualidade, deparemos com novos modos de enlaçamento desses sintomas com o social. Para dizê-lo de outro modo: nenhuma das pacientes de Freud estava confrontada com a experiência de encontrar-se com o telefone em mãos, teclando números a partir de opções pré-concebidas até ouvir, no final de uma longa lista de operações sem retorno, “ou, para falar com um de nossos atendentes, disque 9”. Trata-se de uma situação tão corriqueira que resulta absolutamente impensável que a mesma não permeie o cotidiano de cada um de nós. Mas, como Freud nos aponta, as banalidades cotidianas fazem comparecer o que há de mais relevante acerca da psicopatologia. Daí que caiba perguntar o que haveria de comum e de discrepante nos sintomas de voz apresentados pelas pacientes de Freud e pela atual população de trabalhadores de telemarketing – que, diga-se de passagem, é composta, em ampla maioria, por moças jovens. De início certamente salta à escuta o que haveria de diverso entre as atuais jovens atendentes de telemarketig e jovens do início do século XX atendidas por Freud: sendo, essas últimas, jovens em cujos sintomas comparecia um padecimento diante da repressão da sexualidade feminina típica de uma sociedade vitoriana. Essa não é uma questão para muitos dos pacientes que hoje atendemos. Para muitos deles, a questão se coloca até mesmo por um imperativo inverso vigente na contemporaneidade: o de gozar tudo. E esse tudo tem uma ampla extensão que vai dos fortuitos encontros da balada ao canal de teleshopping. Esta também é uma questão relativa à sexualidade. Entendendo aqui sexualidade não num sentido estritamente genital, mas em um sentido amplo relativo à satisfação pulsional – tal como Freud propôs. Vivemos em uma época em que os objetos publicitários surgem como a promessa de um gozo ilimitado e, imaginariamente, só não teria acesso a tal gozo quem, por alguma infeliz desventura, não contasse com o crédito disponível para o consumo. Quando observamos anúncios publicitários de 50 anos atrás, não conseguimos deixar de ficar com um sorriso no canto do lábio diante desses anúncios que propagandiavam a suposta utilidade do objeto anunciado. Que coisa mais naif resulta hoje em dia falar de supostas vantagens utilitárias de um objeto de consumo em lugar de situá-lo como o representante da segurança, felicidade, juventude, ou seja lá qual for o gozo ilimitado. O telemarketing é um fenômeno que surge dentro de tais coordenadas de estabelecimento do laço social. Seus operadores ora emprestam a sua voz à reprodução de frases preconcebidas em que realizam essa promessa de satisfação ilimitada com o produto no ouvido do proprietário de um telefone; ora emprestam seu ouvido no teleatendimento para o cliente inevitavelmente insatisfeito com o produto adquirido. Afinal o gozo não se revelou ilimitado. Que surpresa desagradável. Por que será que tantos atendentes de telemarketing emudecem diante dessa tarefa? Os trabalhos de voz, em fonoaudiologia, muito têm a nos dizer sobre esta questão, situando paradigmas sobre práticas preventivas que permitam intervir tanto em relação a melhores condições gerais de um trabalho que exige extremamente a voz quanto ao correto uso dessa função que cada um pode vir a fazer a partir de uma intervenção clínico-terapêutica. Mas, já que nos situamos no marco de um debate interdisciplinar, procuraremos levantar questões em relação aos sintomas atuais da voz pela via do sujeito psíquico que deles padecem e sua articulação ao laço social. Nesse sentido, vale recordar a diferença entre os termos voz e fonação. Enquanto o termo phone, do grego, do qual se deriva fonação, afonia, disfonia, cacofonia, refere-se especificamente à produção do som, o termo vox, do latim, implica que a produção sonora seja tomada como chamado que se dirige a alguém. Daí os termos invocação, que implica chamar os deuses; evocação, que implica chamar à lembrança; ou convocação, que implica chamar entre pares. Mas o que ocorre quando a voz tem que ser posta em funcionamento de modo dissociado do sujeito? Dejours, em 1949, já nos apontava o padecimento enfrentado por telefonistas diante da repetição de enunciados fixos durante a execução do trabalho. Tais enunciados produziam um efeito de retorno em diversas situações da vida, em que o sujeito acaba por perceber-se invadido por enunciados nele impostos como a fala de um Outro absoluto, resultando em verdadeiras estereotipias da fala e pensamento. No caso de trabalhadores do telemarketing encontramos também esta dimensão do apagamento do sujeito. Não por acaso, ainda que o nome do atendente seja sempre dito no início de cada ligação, na segunda ou terceira vez que ligamos ao serviço de teleatendimento para resolver um problema e nos perguntam com quem falamos na vez anterior, não sabemos com quem foi. Este esquecimento sem nenhuma importância aparente ocorre porque, ainda que o nome tenha sido dito, na conversa não comparece nenhuma fala que singularize a fala como sendo de Pedro, João ou Maria. Apresentam-se frases preconcebidas que respondem a um código fixo. Os órgãos fonatórios são assim convocados a executar uma função, de modo dissociado da fala do sujeito. Algo ali “enlouquece” e toma a função: a voz fracassa para que o sujeito possa começar a comparecer, um comparecimento que se dá pela paradoxal via do emudecimento. Se o sujeito não puder ser aí escutado, se não puder vir a falar desdobrando os significantes que estabelecem seu singular lugar de falante, se pôr a voz em funcionamento implicar a indefectível captura na mera reprodução de um código fixo, não restará outra saída a não ser emudecer. Trata-se de uma saída muito pouco interessante já que consiste em pagar com o padecimento de seu corpo uma tentativa de poder comparecer enquanto sujeito, nem que seja pela via do silêncio. No caso dos atendentes de telemarketing a questão parece colocar-se além do apagamento do sujeito por meio de frases fixas. Além de emprestar sua voz à reprodução de frases que apagam sua fala enquanto sujeito, também suportam entre sua voz e seu ouvido o advento do fracasso, o curto-circuito entre a promessa de gozo ilimitado e o retorno de sua inevitável insatisfação. O corpo fica assim extremamente exposto a encarnar um sintoma, já que é entre seu ouvido e sua voz que se deflagra a dimensão enganosa da promessa de um gozo ilimitado acessível pela via do consumo de objetos. Este é mesmo esquema de somatização do qual nos fala Freud. Mas é preciso escutar de que modo, em cada época, o laço social rebate na produção de sintomas de cada um atrelando-se à sua singular teia significante. Temos aí uma interface, uma possibilidade de interlocução.
 
Contato: julietaj@uol.com.br
 

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