A fonologia
trabalha com as funções dos sons da fala com o objetivo
de determinar as distinções fonéticas que em
uma determinada língua possuem valor diferencial (Jackobson,1967;
Fey,1992).
Nesta concepção, o transtorno fonológico pode
ser definido como uma alteração caracterizada por
substituição, omissão e/ou distorção
dos sons da fala presente no sistema fonológico de um indivíduo.
Ingram(1976) destaca que tais alterações podem ser
decorrentes de dificuldades com a organização da regra
fonológica, a percepção auditiva dos sons e/ou
sua produção.
A percepção dos sons da fala é algo presente
e necessário durante as atividades diárias das pessoas
que, como ouvintes, precisam se comunicar com outras pessoas. Segundo
Schouten, Gerrits e van Hessen(2003), o número de fonemas
que se tem que identificar é limitado, porém, as variações
acústicas ocorrentes na interpretação de cada
um deles são muito grandes.
As propriedades acústicas dos sons da fala (variações
de intensidade, freqüência e duração) são
importantes para a organização desses sons em classes
sendo essa classificação fundamental para o processamento
da fala (Stevens,1980; Nguyen e Hawkins,2003).
Um dos grandes desafios no aprendizado da linguagem oral é
identificar os fatores que ajudem as crianças a superarem
suas dificuldades nesta área, dentre eles, os padrões
de duração dos eventos de fala (Kello,2003).
Os estudos que envolvem a duração dos sons fricativos
surdos e sonoros indicam que, em geral, os sons surdos apresentam
maior duração que os sonoros (Denes,1955; Baum e Blumstein,1987;
Borden,Harris e Raphael,1994). Entretanto, estes mesmos estudos
apresentam resultados contraditórios em relação
ao uso da duração como pista distintiva do traço
de sonoridade.
A partir disso, o objetivo deste trabalho foi verificar a influência
deste parâmetro acústico na percepção
de sons fricativos surdos e sonoros do português brasileiro.
Para isto, foram apresentadas emissões das palavras fila
e vila a 22 adultos com idade média de 19:5 anos alunos do
1o ano do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo, sem queixa de alteração auditiva.
Nenhum deles havia participado anteriormente de algum tipo de pesquisa
relacionada à fonoaudiologia.
Os estímulos foram selecionados a partir da análise
das três produções de cada palavra, realizadas
por oito meninos com idade média de 8:0 anos, sendo três
com processo fonológico de ensurdecimento de fricativas e
cinco sem alterações fonológicas.
A identificação do processo fonológico de ensurdecimento
foi realizada inicialmente a partir da análise auditiva da
segunda e terceira autoras. Em seguida, as emissões foram
gravadas e analisadas no Computerized Speech Laboratory (CSL-4300B)
sendo obtido o espectrograma, no qual foi verificada a presença
ou ausência da barra de sonoridade, além das medidas
de duração dos sons /f/ e /v/ de cada repetição.
Dentre as 48 produções analisadas foram escolhidas
12: três filas e três vilas emitidas por crianças
sem alteração e três filas e três vilas
emitidas por crianças com processo de ensurdecimento. Foram
calculadas as diferenças entre as durações
dos sons de cada repetição para cada sujeito. Selecionaram-se
três seqüências de repetições de
crianças com processo de ensurdecimento e três sem,
nas quais as diferenças de duração entre /f/
e /v/ variaram. Os valores podem ser observados no Quadro 1.
Quadro 1: Estímulos selecionados para apresentação- tempo em ms
Sujeito |
Fila |
Vila |
Diferença |
Normal |
246 |
84 |
162 |
máxima |
Normal |
256 |
191 |
65 |
média |
Normal |
215 |
189 |
26 |
mínima |
Patológico |
119 |
57 |
62 |
máxima |
Patológico |
108 |
69 |
39 |
média |
Patológico |
286 |
275 |
11 |
mínima |
Após a seleção, as produções
foram gravadas em ordens diferentes em três CDs, constituindo
três listas (Quadro 2). Assim, oito indivíduos ouviram
a lista1, sete a lista2 e sete a lista3. Essas foram apresentadas
individualmente aos sujeitos por meio de um fone de ouvido, acoplado
a um notebook da marca Toshiba(2065CDS), em sala acusticamente tratada.
A intensidade de apresentação dos estímulos
foi padronizada. Após cada palavra, houve um intervalo de
cinco segundos para que os sujeitos registrassem a palavra exatamente
da maneira como ouviram.
Lista 1 |
Lista 2 |
Lista 3 |
Sujeito |
Palavra |
Tempo* |
Sujeito |
Palavra |
Tempo* |
Sujeito |
Palavra |
Tempo* |
Normal |
Fila |
256 |
Normal |
Vila |
84 |
Patológico |
Vila |
69 |
Patológico |
Vila |
69 |
Patológico |
Fila |
119 |
Normal |
Fila |
215 |
Patológico |
Fila |
108 |
Normal |
Fila |
256 |
Patológico |
Fila |
286 |
Normal |
Vila |
84 |
Patológico |
Vila |
275 |
Normal |
Vila |
84 |
Patológico |
Fila |
286 |
Normal |
Fila |
215 |
Patológico |
Fila |
108 |
Normal |
Fila |
246 |
Normal |
Vila |
191 |
Patológico |
Vila |
275 |
Normal |
Vila |
191 |
Patológico |
Fila |
286 |
Normal |
Vila |
189 |
Patológico |
Vila |
275 |
Patológico |
Vila |
57 |
Normal |
Fila |
246 |
Normal |
Fila |
215 |
Normal |
Fila |
246 |
Patológico |
Vila |
57 |
Patológico |
Fila |
119 |
Patológico |
Vila |
69 |
Normal |
Fila |
256 |
Patológico |
Vila |
57 |
Normal |
Vila |
189 |
Patológico |
Fila |
119 |
Normal |
Vila |
189 |
Patológico |
Fila |
108 |
Normal |
Vila |
191 |
* em ms.
Os resultados foram analisados quanto ao número de acertos
(identificação correta do som), número de erros
(identificação do som como seu cognato surdo ou sonoro)
e número de substituição por outros sons (outro
som que não seu cognato). É importante salientar que
o som /v/ produzido pelos sujeitos com transtorno fonológico
foi ensurdecido e que, portanto, sua identificação
foi considerada correta quando o ouvinte identificou-o como /f/
e errada, quando o identificou como /v/.
Em termos gerais, os ouvintes participantes da pesquisa tiveram
mais acertos na identificação das palavras produzidas
pelos sujeitos sem transtorno fonológico.
A análise inferencial foi feita pelo Teste de Igualdade de
Duas Proporções (Spiegel,1993; Fonseca e Martins,1996)
e o nível de significância adotado foi de 0,08(n sig.0,08)
devido a baixa amostragem.
Entre os falantes típicos, a identificação
correta do som [f] de /fila/ não evidenciou diferença
significante (p=0,709). Porém, as comparações
das identificações como substituições
por outros entre as durações 256ms e 246ms indicou
diferença significante (p=0,036) sendo que os ouvintes erroneamente
identificaram a palavra /fila/(f=256ms) como /pila/. Isto pode ser
explicado pelo efeito de lista, já que somente os sujeitos
que ouviram a terceira lista cometeram este erro. Nesta lista, a
palavra anterior à /fila/ (/f/=256ms) era a palavra /vila/
produzida por um sujeito patológico com duração
do /v/ ensurdecido de 57ms, e que também havia sido identificada
como /pila/ pelos ouvintes.
Ainda para as crianças típicas, observou-se diferença
significante quando foram comparadas as identificações
da palavra vila com duração do som /v/ de 191ms e
de 84ms, em relação aos erros (p=0,079) e à
substituição por outros (p=0,073). O som /v/ de maior
duração foi identificado pelos ouvintes como /f/ e,
a palavra transcrita como /fila/. Já o /v/ produzido com
menor duração, foi identificado de duas formas diferentes,
como /p/ sendo a palavra transcrita como /pila/, ou como /l/, sendo
transcrita como /lila/.
Esses resultados indicam que, pelo fato do /v/ de maior duração
ter apresentado valor semelhante à duração
dos sons surdos que são, no geral mais longos, (Denes, 1955;
Baum e Blumstein, 1987; Borden, Harris e Raphael, 1994) eles foram
erroneamente identificados pelos ouvintes como seu cognato surdo.
Já o som /v/ de menor duração apresentou maior
número de substituições pelos sons /p/ ou /l/,
mostrando que uma diminuição na duração
do som fricativo tende a ser percebido como um outro som que não
o seu cognato surdo.
Na análise da percepção dos sons emitidos pelos
falantes com transtorno fonológico no som /f/(produzido na
palavra /fila/) houve diferença significante quanto ao número
de acertos (p<0,001) na comparação entre as três
durações do /f/ (286ms,119ms e 108ms). Quanto maior
a duração do /f/, os ouvintes tiveram menor dificuldade
em identificar a palavra como /fila/, uma vez que o valor está
mais próximo ao dos falantes típicos. Inversamente,
quanto menor a duração do som /f/ da palavra /fila/,
maior o número de erros na sua identificação,
sendo a palavra /fila/ identificada como /vila/. Esses achados mostram
que o som /f/ realmente requer uma maior duração para
ser identificado como tal e que a diminuição deste
parâmetro acústico altera sua percepção
em relação à sonoridade.
Em relação à identificação do
/v/, na palavra /vila/, emitida pelos falantes com transtorno fonológico
como /fila/, verificou-se diferença significante quando comparadas
as produções do /v/ ensurdecido de maior duração
(275ms) com as durações de 69ms(p=0,035) e de 57ms(p=0,015)
mostrando que os sujeitos tiveram maior facilidade para identificá-lo
de maneira correta, ou seja, como surdo, quanto maior sua duração.
Novamente, quanto maior a duração, mais facilmente
um som é identificado como surdo, ao passo que, quando sua
duração diminui, a tendência do ouvinte é
identificá-lo como sonoro ou como outro som.
Dessa forma, os resultados apresentados mostram que o parâmetro
acústico duração pode ser uma pista importante
na identificação dos sons surdos e sonoros, uma vez
que ouvintes não treinados apresentaram dificuldade na identificação
dos sons /f/ e /v/ de diferentes durações. Esses dados
ressaltam a importância da realização de procedimentos
objetivos que busquem analisar os sons produzidos de maneira mais
fidedigna.
Além disso, na medida em que grande parte dos diagnósticos
fonoaudiológicos é realizada com apoio na percepção
do terapeuta, há necessidade de treinamento auditivo que
auxilie na identificação correta dos sons. Com isso,
a estruturação de procedimentos para a intervenção
fonoaudiológica poderá ser realizada da maneira mais
adequada.
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REFERENCIAS
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