ESTUDO DE CASO – RISCOS SOCIAIS E AFETIVOS
Juliana Perina Gandara
Comentador(a) de Caso
Instituição: LABORATÓRIO DE INVESTIGAÇÃO FONOAUDIOLÓGICA EM DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E SUAS ALTERAÇÕES DO CURSO DE FONOAUDIOLOGIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP
 
Pesquisas recentes têm demonstrado influências genéticas determinantes na aquisição e desenvolvimento da linguagem (Bishop, 2001; Viding et al., 2004). Sabe-se que, desde recém-nascidas, as crianças apresentam comportamentos que refletem a sua integridade neurológica e fisiológica e que, além de serem fortes preditores do desenvolvimento posterior, modelam o comportamento dos pais e/ou cuidadores, influenciando diretamente a construção do ambiente afetivo ao qual elas estarão expostas durante a sua infância (Brazelton, 1979). Assim, considerando o papel do contexto na aquisição e no uso da linguagem, fatores ambientais (incluindo aspectos sociais e afetivos), associados aos fatores biologicamente determinados, exercem grande efeito nas diferenças individuais quanto às habilidades (e também as desabilidades) de linguagem, principalmente no início do desenvolvimento (Schwartz, 1982; Spinath, 2004). A aquisição da linguagem resulta de processos internos que operam as informações que as crianças obtêm do que ouvem, e, portanto, a interação social é essencial para o processo de aquisição. A natureza das interações sociais que disponibilizam as informações é modelada por variáveis sociais e culturais, como as condições socioeconômicas da família, o grau de instrução dos pais e a própria cultura do país onde vivem. Vários estudos têm demonstrado que a quantidade de fala direcionada à criança, a riqueza do vocabulário usado, a quantidade de perguntas e a extensão das sentenças são preditores positivos do desenvolvimento da linguagem (Bornstein et al., 1998; Weizman e Snow, 2001; Hoff e Naigles, 2002; Clark, 2004). Além disso, outros fatores que dependem do contexto, como a freqüência e a natureza do input, a categorização das palavras aprendidas, a experiência sensório-motora da criança, a combinação dos estilos comunicativos da criança e dos pais e/ou cuidadores influenciam o desenvolvimento da linguagem (Schwartz, 1982). Dessa forma, diferenças no início da aquisição de linguagem são, algumas vezes, resultantes de diferenças de acesso ao input do qual ela depende, e não de um distúrbio de linguagem (Hoff e Tian, 2005). Por outro lado, crianças com distúrbios de linguagem apresentam déficits de cognição social, e, conseqüentemente, riscos para problemas sociais e baixa auto-estima (Fujiki et al., 1999; Jerome et al., 2002; Marton et al., 2004; Qi e Kaiser, 2004; Linares-Orama, 2005). Assim, o ambiente social e afetivo desfavorável ao desenvolvimento da linguagem pode ser o resultado das pobres habilidades de linguagem da criança, e não a sua causa (Hart et al., 2004). A identificação precoce dos efeitos do ambiente nas habilidades lingüísticas, quer como causa ou conseqüência, traz implicações para o diagnóstico e a intervenção de linguagem. Como as crianças que são mais lentas do que a média na aquisição de linguagem não necessariamente têm alterações nos mecanismos internos responsáveis pela linguagem, todas devem ser avaliadas, assim como o ambiente ao qual estão expostas, para que seja feito o diagnóstico diferencial. Dessa forma, a intervenção poderá ocorrer de forma indireta, pela orientação à família, e também de forma direta, pela identificação de áreas que devem ser enfocadas na terapia, reduzindo o impacto dos efeitos ambientais no desenvolvimento e prevenindo que atrasos no início da aquisição de linguagem persistam ao longo do desenvolvimento da linguagem oral e, mais tarde, escrita (Qi e Kaiser, 2004; Spinath, 2004; Hoff e Tian, 2005). A partir dessas considerações, segue a descrição de um caso, acompanhado no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em Desenvolvimento da Linguagem e suas Alterações da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo de março de 2004 a abril de 2005, com diagnóstico de Alteração Específica de Desenvolvimento da Linguagem (AEDL). A criança (G.B.R.G., 3:0 anos, sexo masculino) foi encaminhada ao serviço pelo otorrinolaringologista, com a queixa foi de que falava errado. Na anamnese, a mãe referiu que \"achava a comunicação de G. horrível, que tinha dias que não entendia nada e que ele era muito estúpido com as crianças” (sic). Embora tenha informado na entrevista que gestação e parto foram normais e a termo, sem intercorrências, a avó materna informou, posteriormente, que a mãe foi usuária de drogas antes da gestação e teve convulsão e alteração da pressão sangüínea durante o parto. O desenvolvimento neuropsicomotor foi normal e a criança apresentou histórico de bronquiolite aos três meses de idade (internação de 25 dias). Quanto ao desenvolvimento de linguagem, emitiu as primeiras palavras aos 2:6 anos. A criança mora com a mãe, a avó materna e o irmão (um ano mais novo). Os pais são separados e, apesar de ser muito apegado ao pai desde pequeno, na época da anamnese estava há sete meses sem contato com ele. A mãe e a avó descreveram a criança como “nervosa”, irritando-se facilmente com qualquer pessoa, adulto ou criança. Além disso, apresentava tendência ao isolamento, principalmente em casa, e era muito agressivo nas brincadeiras (quebrava os brinquedos). Sobre o relacionamento mãe/filho, a avó relatou que os dois se entendiam como irmãos, pois brigavam muito. Desde o primeiro contato, a criança mostrou-se bastante agitada. Usava chupeta com uma fralda pendurada, que não deixou em momento algum durante a anamnese. A mãe apresentou, também desde o início, uma atitude agressiva em relação ao filho (chamava sua atenção a todo momento e segurava-o de forma rude) e desinteressada em relação à avaliação fonoaudiológica (compareceu poucas vezes ao serviço; a avó se responsabilizava pelo atendimento de G.). Na avaliação, houve um período inicial de adaptação, pois a criança chorava compulsivamente e se recusava a realizar qualquer atividade de interação. Após algumas semanas, passou a interagir mais com a terapeuta, embora demonstrasse preferência em brincar sozinho, e então foi possível realizar a avaliação formal. Apesar de participar mais das atividades, observou-se que a criança não mantinha contato de olho e, eventualmente, quando se recusava a realizar alguma tarefa, ficava parado e calado, com o olhar fixo em algum ponto da sala de terapia. Além disso, interagia apenas com a terapeuta responsável, recusando-se a responder ou a dirigir o olhar a qualquer outra pessoa que se aproximasse. Na avaliação formal, G. apresentou dificuldades nos seguintes aspectos avaliados: fonologia (Wertzner, 2004), vocabulário expressivo (Befi-Lopes, 2004) e discurso. A fonologia caracterizava-se principalmente por processos de desenvolvimento inadequados à idade da criança. O vocabulário expressivo foi caracterizado por processos de substituição semanticamente relacionados às palavras-alvo, porém não descritos no desenvolvimento típico de linguagem. Quanto ao discurso, analisado a partir da produção desencadeada por uma figura, foi simples e confuso, classificado como descritivo, com desorganização sintática que comprometeu a inteligibilidade. Embora o desempenho pragmático da criança tenha sido compatível com a padronização da prova para a idade (Fernandes, 2004), as funções comunicativas observadas foram pouco interativas e o uso dos meios vocal e gestual foi relativamente alto. Ao longo do ano, a intervenção fonoaudiológica enfocou principalmente os aspectos lexicais e discursivos. A fonologia não recebeu intervenção direta. Além disso, aspectos pragmáticos observados informalmente, como o pouco contato visual, a tendência a brincadeiras isoladas e primitivas e o desinteresse pela comunicação com outras pessoas, foram privilegiados. Também foram feitas orientações à família (principalmente à avó, já que a mãe participava pouco, mesmo sendo solicitada) quanto aos aspectos que estavam sendo enfocados em terapia e também quanto à retirada de hábitos orais (principalmente a chupeta). Na reavaliação, após 8 meses de intervenção, a criança apresentou sistematicamente apenas processos fonológicos adequados à sua idade. Na prova de vocabulário expressivo, estava dentro do esperado para a idade em relação às designações usuais e os processos de substituição apresentados eram também adequados, de acordo com os parâmetros da prova. O discurso, embora ainda descritivo e muito simples, mostrou maior organização e elaboração sintática, refletidas na inteligibilidade. Além disso, a criança apresentou-se mais interativa de forma geral, com períodos maiores e mais freqüentes de contato visual e melhora significativa na qualidade da brincadeira. A grande evolução de G. gerou certa ansiedade na avó, que questionava constantemente sobre alta terapêutica. No início de 2005, ela informou à terapeuta que não poderia mais se comprometer a levar a criança para o atendimento, por motivos de saúde. Segundo ela, G. só continuaria o tratamento se a mãe se convencesse da importância de levá-lo. Desta forma, a mãe foi convocada por carta, mas não compareceu no dia marcado, e foi caracterizado abandono. Apesar do pouco tempo de acompanhamento, o caso descrito exemplifica as pesquisas internacionais sobre a relação entre o desenvolvimento da linguagem e as habilidades sociais. Os comportamentos e as características lingüísticas apresentados inicialmente pela criança não permitiram que se estabelecesse uma relação de causa e conseqüência com sua história de privação social e afetiva. Embora poucas modificações significativas tenham ocorrido no ambiente, a freqüência na creche e a terapia fonoaudiológica contribuíram para que algumas necessidades sociais fossem supridas, e isso refletiu em melhoras significativas nas habilidades sociais e de linguagem. A anamnese detalhada e cuidadosa foi essencial para que os riscos sociais e afetivos fossem identificados e relacionados às alterações de linguagem e aos comportamentos sociais da criança. Desta forma, foi possível fazer um planejamento terapêutico que abrangesse todos os aspectos observados, oferecendo, na medida do possível, um ambiente mais adequado ao desenvolvimento da linguagem.
 
Contato: jugandara@globo.com
 

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