VOZ E PSICANÁLISE: INTERFACES |
Daniele Guilhermino Salfatis
Palestrante |
Instituição: PUC-SP |
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Muitos são os pontos constituintes da interface dessas duas áreas clínicas, quais sejam: Fonoaudiologia e Psicanálise. O foco dessa apresentação é o de tocar alguns pontos de convergência que nos fazem repensar a clínica a partir da ótica da subjetividade. No contexto aqui inserido, subjetividade não é tomada como oposta à objetividade, como tradiciomalmente utiliza-se para referir-se a testes e a avaliações, mas como “relativo ao sujeito...relativo à vida psíquica do sujeito” (Houaiss, 2001, p. 2625) Considerar a subjetividade pressupõe, a assunção de uma concepção de sujeito não cartesiana, ou seja, tomar o sujeito como não detentor da razão absoluta, mas submetido às manobras do inconsciente. Dizer isso significa colocar nosso paciente em um lugar de não saber de si ou de seu sofrimento, de forma consciente e racional. O sofrimento também é visto a partir de outro prisma que contempla a noção de sintoma como indiciário de um conflito latente, o qual a história do paciente desenhou. A história, por sua vez, não só desenha o sintoma, como também os contornos do corpo, muitas vezes marcado pela patologia. Dolto (2002) explicita a diferença entre esquema corporal e imagem do corpo. Segundo ela, o esquema corporal é aquilo que faz do homem um representante da espécie, sendo portanto igual para todas as pessoas. A imagem do corpo, por sua vez, é singular, é produto da história do sujeito e de suas experiências emocionais, é o signo de um certo nível da estrutura libidinal (p. 09). Sendo o corpo produto da história de um sujeito, a voz também o será, suas características psicoacústicas, “patológicas” ou não, terão relações com a história, com as representações e com o discurso do sujeito. A partir destes conceitos é possível repensar a clínica fonoaudiológica por meio de um outro paradigma, o qual coloca a subjetividade em evidência. Colocar a subjetividade em evidência tem como consequência a desbiologização dos procedimentos terapêuticos tradicionais, que por partirem de um paradigma diferente do proposto aqui, acabam por privilegiar essencialmente as características orgânicas. Tomar esse caminho epistemológico obriga, por uma questão de coerência teórica e metodológica, recriar os procedimentos técnicos, uma vez que não só o delineamento orgânico e psicoacústico da disfonia serão vetores de orientação terapêutica. A escuta daquilo que o sintoma indicia e a abertura de possibilidades para que o sofrimento refletido na voz se torne palavra, passam a ser condizentes com a ética estabelecida epistemológicamente. É importante ressaltar que essa escolha teórica não implica ignorar as marcas orgânicas ou psicoacústicas, ao contrário, estas serão pistas para o desvendamento do conflito que está por trás do sintoma. Também não significa que os exercícios vocais serão exterminados, mas balizados por uma conduta técnica que parte do que é revelado pelo paciente e estabelecido na relação terapêutica. Sendo assim, não perdemos de vista objetivos fonoaudiológicos, o sintoma vocal continua a ser o foco de atenção, porém recortado com a moldura de um outro aporte teórico. Importante ressaltar também que compartilhamos com a Psicanálise conceitos teórico – clínicos, não significa utilizar o método clínico analítico. Assim como nos procedimentos tradicionais utilizamos aportes teóricos emprestados da Medicina, mas não utilizamos a mesma terapêutica, não faremos uso da terapêutica analítica, mesmo porque para o analista o inonsciente, e não a voz, será o foco de suas intervenções. Tomar a subjetividade como norte para a conduta clínico-terapeutica não afasta a Fonoaudiologia dos sintomas historicamente determinados como os pertencentes a este campo, nem tão pouco os transforma, apenas os toma sob uma outra perspectiva. Groddeck, nas palavras de Ávila (2002), afirma que por trás de toda doença há uma intencionalidade. A psicanálise conhece bem a estruturação dos “benefícios secundários” dos doentes neuróticos. Sabe bem que inúmeras vezes o que sustenta os sintomas neuróticos é que eles promovem ganhos sociais, profissionais e, principalmente, afetivos para quem os padece. Porém o que Groddeck ressaltará é que os processos inconscientes de todas as pessoas podem comparecer à consciência na forma de sintomas de doença orgânica, desde que com isso expressem a problemática inconsciente. Freud (1926) também nos chamou a atenção para o ganho secundário proveniente da doença o que nos auxilia o raciocínio clínico de pacientes que não apresentam progressos no decorrer do tratamento, ou que recidivam. Há um além da lesão, um além do que é dito, há o sofrimento e o não o dito que a partir de uma concepção clínica não causalista e linear se descortina para o terapeuta. É importante destacar também características simbólicas específicas da voz como por exemplo a de fazer laço com o outro e ao mesmo tempo ser marca de diferença, ou seja é a voz que convoca o outro, que interpela o outro desde os tempos mais tenros da vida do sujeito e, por outro lado, é o que diferencia, uma vez que a voz é característica singular em cada um de nós. Para o método clínico isso tem relevância pois poderemos levantar questões a respeito do status desse laço. Por exemplo, uma dona de casa que apresenta disfonia por gritar demais com os filhos, ou uma operadora de telemarketing que está rouca em decorrência do trabalho. Porque esses sujeitos não podem mais fazer laço, ou fazê-lo com sofrimento? Porque e pra que o sintoma aparece nesse lugar em específico? Claro que as condições do uso da voz devem ser consideradas, como as condições de trabalho de um professor que apresenta disfonia, ou a maneira com que um ator maneja sua voz ao interpretar um personagem, porém, por outro lado, não podemos deixar de pensar porque esse professor ou esse ator apresentou sintomas vocais e outros profissionais com as mesmas condições de trabalho não. Podemos pensar como é interessante o fato da disfonia distorcer as características vocais de um paciente o impedindo de falar como sempre falou, com a sua marca de singularidade. Estes são alguns elementos a serem refletidos a partir de um paradigma utilizado pela Psicanálise e por uma clínica fonoaudiológica que mire a subjetividade sem que estes campos se confundam, mas compartilhem bases teóricas convergentes.
Referências Bibliográficas:
Ávila LA. Doenças do corpo e doenças da alma. São Paulo: Escuta; 2002.
Dolto F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva; 1984. p. 1-47.
Freud S. (1926 [1925]) Inibições, sintomas e angústia. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XX.
Groddeck, G. Condicionamento psíquico e tratamento das moléstias orgânicas pela psicanálise. In: Estudos psicanáliticos sobre psicossomática, São Paulo: Perspectiva; 1992. Apud Ávila, LA. Doenças do corpo e doenças da alma. São Paulo: Escuta; 2002.
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