ESTUDO DE CASO - RISCOS SOCIAIS E AFETIVOS: CASO JERRY
Malka Birkman
Comentador(a) de Caso
Instituição: PUCSP
 
O caso relatado introduz minha dissertação de mestrado defendida em dez/2003, intitulada: “O corpo simbolicamente marcado por suas histórias os transtornos de linguagem em questão”, que tem como objetivo investigar as possíveis relações entre intervenções cirúrgicas e internações hospitalares sofridas por crianças pequenas e transtornos de linguagem e psíquico subseqüentes. Concluída a dissertação, obtive como resultado a confirmação das relações hipotetizadas. As histórias, tanto das crianças quanto de suas famílias, pareciam ser, a princípio, indissociáveis, afetando o corpo da criança, uma vez que este é entendido para além da carne, no sentido estritamente orgânico, sendo marcado pelo desejo, pela ordem das inscrições simbólicas subvertendo assim o funcionamento do órgão. Jerry (3 anos), uma criança com transtornos de linguagem: uma fala com repetições (ecolálica) e longos períodos de silenciamento acompanhado de cegueria congênita. A família andava em bloco, ou seja, onde um estava, estavam todos. No primeiro encontro Jerry gritava no colo do pai, balançando a cabeça. O pai brincava com o filho que começa a gritar ainda mais alto para seu desassossego que não sabia como contê-lo. “A tia (dizia ele referindo- se a mim) não vai querer mais que você venha aqui fazer bagunça. Aqui não pode fazer bagunça.” E Jerry repetia, “aqui não pode fazer bagunça”. A mãe, durante todo este nosso encontro inaugural apresentava-se irritada, discorrendo um discurso exausto, esgotado, carregado de dor, com inúmeros jargões médicos e termos técnicos conforme citava os tratamentos aos quais Jerry foi submetido, tendo sido alvo de pesquisas sem definição de um diagnóstico e, conseqüentemente, de uma terapêutica. Freqüentou, desde os primeiros meses de Jerry, quando suspeitou do problema de visão, inúmeros consultórios e especialidades médicas. Sueli (a mãe), apontou que seu filho demorou para andar, “começou a andar com apoio atualmente”, até então ele era muito molinho”. Sobre a fala, disse que ele só repete o que lhe dizem, fora isto quase não fala. Jerry, segundo a família, não apresentava qualquer distúrbios neurológico que justificasse o atraso motor. A mãe formulava como hipótese para os atrasos do filho (andar e falar) o fato dele não enxergar. “Ele não fala porque não enxerga.” Na primeira sessão, assim como em todas as outras subsequentes, fui buscá-lo na sala de espera. Ao chamá-lo ele não esboçou qualquer reação. Peguei-o pela mão e assim fomos caminhando até a sala, de mãos dadas. Jerry dava passadas desencontradas – semelhante a uma marcha atáxica. Percebi que caminhar era ainda algo estranho para seu corpo, que se apresentava desacostumado com os movimentos da marcha. Quando, por um segundo, eu soltei sua mão ele ficou estático, paralisado, sem qualquer reação, e assim que retornei a segurá-lo e ele voltou a caminhar. Chegando na sala nós nos sentamos no chão. Ele sentou-se colado em mim. Quando fui me movimentar para alcançar alguns brinquedos ele começou a chorar. Um choro aflito, angustiado. Sentei novamente ao seu lado e envergou todo o seu corpo em minha direção, parando de chorar. Eu o acomodei em meu colo dizendo que eu não o abandonaria ali, explicando o motivo de meu afastamento. Jerry posicionou a cabeça no meu peito, e ali ficou parte da sessão. Eu notava, naquela sessão, que o corpo de Jerry poderia assumir qualquer posição desde que estivesse colado ao meu. Assim, qualquer que fosse a posição que eu o colocasse, permanecia. E caminhava apenas se eu o tocasse. Em conversa com a psicóloga que o atendia, em uma instituição especializada em deficientes visuais, narrou inúmeras cenas que se repetiam de maneira idêntica na minha clínica, entre elas: a família toda comparecer a todas as sessões, questionamentos que a mãe fazia para nós duas, como por exemplo, sobre como retirar a frauda do filho, uma vez que ele ainda não tinha controle esfincteriano. A psicóloga destacou que Jerry apresentava transtornos psíquicos caracterizados como psicose. Em sessões subseqüentes, fui notando que Jerry apresentava-se mais confiante na nossa relação. Certo dia, fui buscá-lo na sala de espera, como sempre acontecia. Fomos de mãos dadas caminhando pelo corredor em direção a sala, ao que, sem que eu pudesse prever, Jerry começou a dar passadas largas, esboçando uma tentativa de corrida, ao que fiquei muito surpresa, e comentei isso com ele, que riu muito. Freqüentemente brincávamos de jogar uma bolinha um para o outro, e muito me chamava a atenção que ele a jogava sempre na direção em que eu estivesse. Isto me fazia recordar uma passagem em que Dolto (1999) destaca o atendimento de cegos. A autora apontava que tais pacientes relatavam que muitas vezes a bengala era absolutamente dispensável. Os cegos congênitos (com é o caso do Jerry) narravam histórias nas quais eles haviam desenvolvido algo com se fosse um “radar” para o ambiente. Sabiam, pelo som, as dimensões geográfica do espaço em que se encontravam, pela temperatura, enfim, por todos outros sentidos, que não pela visão, conseguiam reconhecer o mundo. Aos poucos Jerry começou a brincar comigo de esconder e achar, sem que a angústia lhe fosse imobilizadora, permitindo com que tal jogo ocorresse. Ele já sabia que se, na brincadeira, eu escondesse o seu leãozinho, segundos depois ele apareceria. Sempre que isto ocorria Jerry dava risadas, e ele mesmo começou a brincar de soltar e pegar novamente o seu leãozinho de pelúcia inseparável. Foi em torno deste jogo que aconteceram muitas sessões. Ele achava muita graça toda vez que pega algumas peças e as arremessa longe com a certeza de que eu iria buscá-las. Ele as jogava justamente na direção oposta a que eu me encontrava. Na brincadeira eu buscava as pecinhas como se estivesse resmungando, ao que imediatamente ele antecipa o prazer do reencontro e ficava rindo durante todo o meu trajeto. Esta risada passou a ser entendida por mim como um gesto de subjetividade, na medida em que ele esboçava minimamente autoria naquele som que produzia, fazendo texto com toda cena, desgrudando-se da fala e do corpo outro. Em um encontro fui buscá-lo na sala de espera conforme o ritual. Ele no colo do pai, ouve sua mãe lhe dizer “olha quem chegou!” (referindo-se a mim, enunciando meu nome). Jerry, de modo absolutamente atípico, desrespeitando o ritual estabelecido, começou a se chacoalhar no colo do pai, quase se soltando dele, dando risadas, demonstrando prazer de nosso reencontro, para surpresa de todos, que deram largos sorrisos, de forma igualmente atípica. A mãe, em nossos breves encontros, entre as entradas e saídas de Jerry das sessões, relatou que ele está fazendo uns barulhos estranhos com a boca (demonstra vibrando os lábios). Disse também que outro dia a irmã dele relatou a novidade:“ mãe, eu perguntei para o Jerry se ele ia na sessão com a fono hoje, e ele disse, eu vou!”. A mãe relatava tal fato, paradoxalmente, alegre e desconfiada. Afinal “como uma criança cega pode falar?”, pensando na hipótese sugerida por ela em nosso primeiro encontro. Por fim, as conclusões que obtive a partir deste estudo foram: 1. Os pais, após pormenorizado relato sobre as questões orgânicas (cegueira, polidactilia) que ganhavam grande destaque, falavam sucintamente sobre as questões da fala de Jerry. Analisando longitudinalmente o caso, passei a compreender a relação que se estabelecia entre os deficits orgânicos e as questões de linguagem: ambas anunciavam a condição patológica que o paciente foi submetido desde os primeiros meses de vida, conferindo-lhe uma existência marcada (em seu corpo e em sua história) pela doença, pelas deficiências. 2. Como fonoaudióloga, entendo que quaisquer dados que se relacionem a história do paciente, não somente aquelas que se referiam aos órgãos fonoarticulatórios e/ou auditivos devem ser levados em consideração, uma vez que o corpo funciona de acordo com os contornos, com as apostas que o outro (especialmente pai e mãe) exercem sobre ele, atribuindo-lhe uma existência simbólica. 3. A patologia de linguagem de Jerry manteve estreita relação com as situações de privação afetiva a que foi precocemente submetido, uma vez que os pais não conseguiam armar leituras para as produções do filho que não fossem entendidas como estrangeiras, afinal havia nascido um “impostor” com o qual eles não se identificavam. Deste modo, destaco que: a prática fonoaudiológica de orientar a família, isto é, “ensinar-lhe” estratégias para lidar com a criança, não garante com que ela consiga lidar simbolicamente com seu bebê, fazendo emergir sujeito. 4. O nascimento orgânico de Jerry não foi concomitante ao nascimento simbólico, formando entre eles um hiato, uma falta de compatibilidade entre o amadurecimento do esquema corporal e dos processos de subjetivação. 5. Jerry sempre foi lido por seus pais desde o lugar da doença, da impossibilidade de realizar várias funções (enxergar, andar, falar) o que criou um transtorno em seus modos de funcionamento. Assim, era como se inconscientemente ele soubesse que algo tinha que funcionar mal. Ele só poderia falar desde o lugar em que foi posto, ou seja, do lugar da doença.
 
Contato: malkabirk@yahoo.com.br
 

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