QUADROS INTERMEDIÁRIOS ENTRE O DISTÚRBIO ESPECÍFICO DE LINGUAGEM E OS DISTÚRBIOS DO ESPECTRO AUTÍSTICO
Noemi Takiuchi
Palestrante
Instituição: FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA SANTA CASA DE SÃO PAULO
 
O Distúrbio Específico de Linguagem (DEL) faz parte do grupo de distúrbios desenvolvimentais específicos, onde uma única área do desenvolvimento está afetada, no caso a linguagem. Não existe até o momento nenhum procedimento diagnóstico mais objetivo, de forma que as crianças são diagnosticadas por critérios de exclusão e inclusão. Como critério de inclusão a criança deve apresentar desempenho inferior ao esperado para sua idade em testes de linguagem, e como critérios de exclusão esta criança deve ter descartadas as hipóteses de deficiência mental, deficiência auditiva, distúrbios psiquiátricos, lesões neurológicas e privação social extrema (Leonard, 1998). Embora a observância dos critérios proporcione o estabelecimento de um grupo com essa caracterização comum, o fenótipo do quadro DEL ainda é extremamente variado, com grande heterogeneidade entre os sujeitos. Porém, é muito freqüente a presença de dificuldades fonológicas, sintáticas e semânticas como as mais marcadas na avaliação de linguagem dessas crianças. Para a maioria das abordagens sobre o DEL, as alterações pragmáticas observadas nas crianças são decorrentes das dificuldades apresentadas nos aspectos formais da linguagem. Considera-se que as alterações fonológicas, gramaticais e lexicais dessas crianças prejudicariam tanto a expressão como a compreensão de mensagens, afetando assim a comunicação e a interação social. Nesta concepção, os déficits sociais e pragmáticos ocorrem como secundários, em conseqüência ao distúrbio primário que incide sobre o domínio dos aspectos mais formais da linguagem. Admite-se ainda que as crianças DEL apresentam intenção comunicativa normal e o desempenho normal em outras áreas do desenvolvimento. Brinton e Fujiki (1993) salientam o fato de a linguagem ter um papel crítico na interação social, de modo que crianças com distúrbios de linguagem constituiriam um grupo de risco para o fracasso social. Isso pode ser comprovado em estudos como o de Paul et al. (1991), realizado em crianças entre 2 e 3 anos de idade, com atraso no desenvolvimento de linguagem. Essas crianças apresentaram déficit em uma escala de socialização, indicando portanto a existência do déficit social. Rice e colaboradores realizaram uma série de pesquisas investigando o efeito do distúrbio de linguagem na interação social de pré-escolares com DEL, e seus dados demonstraram que essas crianças apresentam menor número de iniciativas de interação social, são menos procuradas por seus pares e são menos populares dentro do grupo (Rice et al., 1991; Hadley e Rice, 1991; Gertner et al., 1994). Em outro estudo, Redmond e Rice (1998) verificaram que os professores percebiam dificuldades sociais como mais evidentes, em comparação ao julgamento dos pais de crianças DEL. Essa discrepância indica que as dificuldades sociais são dependentes da situação, e não uma característica intrínseca da criança. Porém, algumas crianças não se encaixam nessas características, embora apresentem uma dificuldade primária de comunicação. Quanto ao déficit lingüístico, diferenciam-se dos quadros mais típicos de DEL pela dificuldade maior recaindo sobre a pragmática, mas ainda assim essas crianças preenchem os critérios de inclusão e exclusão para o diagnóstico. Rapin (1983, 1996) propôs o termo síndrome do déficit semântico-pragmático para descrever dificuldades, indicando como características verbosidade, déficits de compreensão de eventos discursivos, dificuldades no acesso lexical, seleção lexical atípica, habilidades conversacionais inadequadas, fala não direcionada ao interlocutor, dificuldade na manutenção de tópico e respostas fora ou além do tema. Paralelamente, um outro grupo de pesquisadores representado por Bishop descreveu um quadro similar, porém utilizando o termo distúrbio semântico-pragmático como uma categoria nosológica dentro do DEL. Conti-Ramsden et al. (1997) encontraram que as dificuldades apresentadas por esse grupo específico de crianças não eram detectadas pelos testes tradicionais de linguagem, mas eram claramente percebidas pelos professores, que apontavam como grave o distúrbio de comunicação dessas crianças. Bishop (1989, 2000, 2004), analisando as habilidades conversacionais de crianças com diagnóstico de DEL, verificou alterações como enunciados estereotipados, informações quantitativamente inadequadas ao parceiro conversacional, e maior número de respostas pragmaticamente inadequadas, dificuldades essas que ultrapassavam a dificuldade com o domínio de estruturas formais da língua. Devido aos problemas significativos na comunicação e na interação social, tem sido discutido se o quadro descrito como distúrbio semântico-pragmático constituiria um subtipo de DEL ou um subtipo dos DEA - distúrbios do espectro autístico (Brook e Bowler, 1992; Shields et al., 1996; Gagnon et al., 1997; Boucher, 1998; Bishop, 2001, 2002). Dois posicionamentos têm sido considerados com maior fundamentação: o distúrbio semântico-pragmático como uma forma de autismo de alto funcionamento (Shields et al., 1996) e o distúrbio semântico-pragmático como um quadro intermediário entre DEL e o transtorno autístico (Botting e Conti-Ramsden, 1999; Bishop e Norbury, 2002). Embora as dificuldades apresentadas por essas crianças extrapolem o domínio da linguagem, as alterações observadas na interação social e no padrão restrito de interesses são caracterizadas como mais leves e muitas vezes não se completam os critérios diagnósticos propostos pelo DSM-IV para o transtorno autístico. Bishop apresentou estudos que demonstram que existe um grupo de crianças que se caracterizam como sociáveis, comunicativas, com comunicação não-verbal adequada, mas com formas mais rígidas e estereotipadas na linguagem e dificuldades na pragmática. Como o termo distúrbio semântico-pragmático tem sido utilizado como descritivo, e as alterações semânticas ainda necessitam de confirmação por estudos mais controlados, pesquisadores como Conti-Ramsden (1999) e Bishop (2000) sugeriram o termo Distúrbio Pragmático de Linguagem para a referência a esse grupo específico de crianças. Não se trata apenas de apresentar terminologias mais adequadas aos quadros de distúrbios de linguagem, mas sim de aumentar a compreensão sobre as alterações aparentemente fronteiriças entre DEL e DEA. Com o desenvolvimento de instrumentos de avaliação mais precisos o número de casos intermediários tem aumentado, e a sua classificação entre os transtornos globais do desenvolvimento não especificados (TGD NE), conforme proposta do DSM-IV deixa de caracterizar uma solução e passa a constituir um problema. A categoria foi criada no DSM-IV para ser utilizada em casos esparsos, atípicos e na exclusão do autismo com déficits nas três áreas centrais. Além disso, sua descrição é vaga, pouco definida, e acaba por permitir a inclusão de uma grande variedade de perfis clínicos. Desta forma, TGD NE constitui uma categoria muito inespecífica para ser utilizado como diagnóstico e servir na determinação dos serviços educacionais, de saúde ou de apoio ocupacional que este grupo de sujeitos necessita. Antes que se conclua sobre a inclusão ou não do distúrbio pragmático da linguagem como um subtipo dos DEA, é necessária a realização de mais estudos retrospectivos e longitudinais, uma vez que o tempo tem demonstrado que há variações relevantes quanto à socialização, distúrbios de comportamento e emocionais, quando se acompanha a longo prazo as crianças inicialmente diagnosticadas com graves distúrbios específicos de linguagem. Além disso, essa discussão é necessária para que a intervenção fonoaudiológica também seja realizada com fundamentação e enfocando as necessidades específicas dessas crianças. Outro aspecto relevante é importância da avaliação da pragmática nas crianças com distúrbio de linguagem, evitando-se considerar as alterações encontradas como sempre secundárias.
 
Contato: noemitakiuchi@uol.com.br
 

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