Código: PPL0846
COMPREENSÃO DA LEITURA DE INDIVÍDUOS COM TRANSTORNO DE ASPERGER: ESTUDO COMPARATIVO
 
Autores: Renata Cristina Dias da Silva , Karin Ziliotto Dias, Liliane Desgualdo Pereira, Jacy Perissinoto
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UNIFESP-EPM
 
INTRODUÇÃO
O Transtorno de Asperger ou “psicopatia autística” – como foi denominada, inicialmente, por Hans Asperger – foi descrita em 1944. Hans Asperger, um pediatra austríaco, descreveu um grupo de crianças, principalmente meninos, com um padrão típico de déficits e comportamentos. Ao resumir as características típicas desta alteração, o autor pontuou sobre a aparência física das crianças, o bom nível intelectual, dificuldades de linguagem e de atenção, comportamento problemático em situações sociais e as dificuldades emocionais.
Atualmente, o Transtorno de Asperger constitui-se um subgrupo dentro dos Transtornos Globais do Desenvolvimento (APA, 2002).
Há consenso entre pesquisadores da área que indivíduos com Transtorno de Asperger apresentam alterações de comunicação verbal e não-verbal nos diferentes níveis ou sistemas fonético-fonológico, sintático, semântico e, especialmente, no nível pragmático (Happé, 1991; Pastorello, 1996; Tamanaha et al, 2002).
Há uma inabilidade para utilizar a linguagem em situações diárias, pois isto requer habilidades sociais sofisticadas, capacidade para apreciar a intenção do outro e para aderir a regras e convenções sociais. E, neste aspecto, indivíduos com Transtorno de Asperger enfrentam muitas dificuldades para adquirir uma competência comunicativa adequada para atender às solicitações (Rubin, Lennon, 2004).
Portanto, ao analisarmos estudos em indivíduos com Transtorno de Asperger, podemos constatar dificuldades no processo de compreensão, visto que apresentam inabilidades para dominar as perspectivas dos outros e utilizar diferentes contextos para compreender o ambiente (Baron-Cohen et al, 1986; Happé, 1993, 1994).
Ao abordar modelos de processamento de leitura, Navas, Santos (2002) comentaram que a leitura proficiente só ocorre quando quatro processadores estão funcionando paralela e/ou simultaneamente. Assim, uma mesma palavra pode ativar unidades de reconhecimento ortográfico, semântico e fonológico para que a decodificação ocorra de forma adequada. Além disso, quando esta palavra está inserida em sentenças mais amplas, é necessário que o processador contextual também seja ativado. Ou seja, todos os processadores devem trabalhar conectados e envolvidos em uma mesma tarefa para que ela seja realizada adequadamente.
A compreensão da leitura envolve níveis altos e baixos de processamento, além de dependerem da memória e do conhecimento de mundo de cada sujeito (Perfetti, 1992; Nation, 1999). A compreensão e o processamento de unidades lingüísticas amplas como frases, enunciados e textos são habilidades complexas que envolvem dois tipos de componentes, um específico à leitura e outro geral, inespecífico. Os únicos componentes específicos à leitura são os processos de reconhecimento visual e decodificação das palavras isoladas (Fodor, 1983). Os componentes gerais inespecíficos à leitura estão relacionados à capacidade lingüística de compreensão e envolvem memória, atenção, inteligência e conhecimentos gerais, que permitem a integração fonológica, sintática e semântica relacionada à compreensão e à interpretação de textos (Brandão, Spinillo 1998; Hagtvet, 2003).
Reconhecer que cada informação escrita é registrada de maneira independente em cada nível do processamento de leitura é importante (Welsh et al, 1987). O leitor só é competente se for capaz de fazer boa decodificação e se tiver boa capacidade de compreensão. Assim, mesmo que não existam dificuldades em decodificar materiais escritos, a dificuldade de compreendê-los pode existir.
Estudos sobre o processo de aprendizado da leitura sugerem que o nível intelectual é um dos melhores preditores para delinear a capacidade de compreensão de leitura e determinam uma relação intrínseca entre o domínio oral e o escrito (Healy et al, 1982; Snowling, Frith 1987; Welsh et al, 1987; Rego, Parente, 1997; Nation, 1999; Santos, Navas, 2002; Kennedy, 2003). Ainda, a experiência social provida pela escola é ressaltada por Spinillo (2001) como fundamental para incrementar o conhecimento de mundo da criança. Com respeito à escolaridade, Moraes (1995) sugeriu que a alfabetização favorece o desenvolvimento lingüístico, visto que crianças sem dificuldades com poucos anos de escolaridade já obtiveram melhor desempenho do que adultos não-alfabetizados em tarefas de narrativa a partir de figuras.
Tarefas de recontagem de histórias são utilizadas para o estudo da compreensão da leitura em indivíduos com Transtorno de Asperger (Losh, Capps, 2003; Perissinoto, 2004). Assim, hipotetizamos que indivíduos com Transtorno de Asperger apresentam dificuldade de compreensão escrita quando comparados a sujeitos com desenvolvimento típico.

OBJETIVO
O objetivo deste estudo foi avaliar a compreensão de leitura em um grupo de indivíduos com Transtorno de Asperger e comparar o seu desempenho com indivíduos de baixo risco para alterações no desenvolvimento.

MATERIAL E MÉTODO
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo / Hospital São Paulo, conforme o protocolo CEP número 0341 / 02, sendo que todos participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido antes do início do estudo.
Foram avaliados 44 indivíduos que constituíram dois grupos. O grupo GA foi composto de 22 indivíduos diagnosticados por equipe multidisciplinar como portadores de Transtorno Global do Desenvolvimento do subtipo Transtorno de Asperger. E, o grupo de comparação, denominado grupo de baixo risco para alterações do desenvolvimento - GBRAD, também foi composto de 22 participantes, pareados com os indivíduos do grupo GA segundo a idade cronológica.
Os critérios de inclusão dos participantes em cada um dos grupos estudados foram: Para o GA: 1- Diagnóstico multidisciplinar de Síndrome de Asperger segundo os critérios do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais - IV (APA, 1994) e ausência de outras condições mórbidas psiquiátricas, sendo que todos os indivíduos avaliados já apresentavam o diagnóstico de Síndrome de Asperger em sua instituição de origem, conforme os critérios do DSM-IV.
2 – Diagnóstico psicológico do nível de quociente intelectual estimado maior ou igual a 68 (≥68), segundo a Escala Weschler (WISC e WAIS);
3 - Idade cronológica entre 10 anos e 30 anos;
4 – Gênero masculino;
5 – Preferência manual direita. Para a avaliação da dominância lateral, foi utilizado o questionário de Edinburgh modificado por Oldfield (1971) e validado para a população brasileira por Brito et al (1989).
6 - Ausência de evidência de deficiências físicas;
7 – Avaliação audiológica dentro dos critérios de normalidade estabelecidos. O critério de limiar de audibilidade normal utilizado foi a presença de níveis de audição inferiores a 25dBNA, Padrão ANSI – 1969, em todas as freqüências sonoras avaliadas (Silman, Silvermann, 1991).
Para o GBRAD, os mesmos critérios foram utilizados, porém os sujeitos não deveriam apresentar queixas quanto a alterações no desenvolvimento.
Após a seleção dos grupos GA e GBRAD, todos os pacientes foram submetidos à prova de compreensão de leitura. Nesta prova, uma fonoaudióloga experiente no uso e interpretação do teste solicitou ao indivíduo que lesse um texto – “O urubu e as pombas” - em voz alta. Conforme proposto por Moraes (2001), a história “O urubu e as pombas” é dividida em 3 episódios e 14 nodos principais. A compreensão do texto foi verificada pela análise da recontagem do texto pelo indivíduo, segundo modelo de Mandler, Johnson (1977). Sendo assim, a pontuação de cada sujeito no teste foi determinada pelo número de nodos recontados. A pontuação máxima obtida no teste é 14 acertos.
Os resultados desta prova foram classificados da seguinte maneira:
de 0 a 3 Nodos recontados - Não compreendeu
de 4 a 7 Nodos recontados - Compreendeu parcialmente
de 8 a 14 Nodos recontados - Compreendeu totalmente.
Os procedimentos foram filmados em fita VHS com filmadora Panasonic Palmcorder NV-RJ30PN e gravados em fita k-7 com gravador AIWA TP-VS485 Voice Sensor.
Para a análise estatística dos dados foi utilizado o Teste t-Student pareado e fixou-se em 0,05 ou 5% o nível de significância.

RESULTADOS
Considerando os critérios de inclusão de idade cronológica e quociente intelectual estimado, encontramos idades variantes entre 10,6 e 27,2 para o GA, com média em 16,0 e mediana em 15,5, com Desvio-Padrão (DP) em 4,4. Para o GBRAD, a idade variou entre 10,9 e 26,7, com média em 15,9 e mediana em 5,3 com DP em 4,3.
Em relação ao quociente intelectual (QI), encontramos variação entre 68 e 117 para o GA, com média em 93,2, mediana em, 90,5 e DP 13,8. Para o GBRAD, a variação se deu entre 75 e 117, com média em 100,2, mediana em 103,0 e DP 11,1. Não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos GA e GBRAD quanto ao quociente intelectual estimado (p 0,089).
Os resultados da Prova de Compreensão de Leitura (PCL) revelaram diferenças estatisticamente significantes entre os grupos GA e GBRAD, visto que GA teve resultados variantes entre 0 e 13, com média em 5,3, mediana em 6,0 e DP em 3,5 e o GBRAD variou entre 5 e 13, com média em 8,8, mediana em 9,0 e DP em 2,1. Assim, o p-valor foi igual a 0,000, ou seja, menor que 0,05.

CONCLUSÕES
Os sujeitos com Transtorno de Asperger apresentaram prejuízos de compreensão de leitura em relação ao grupo com desenvolvimento típico.
Além disso, é possível observar que em média, os sujeitos com Transtorno de Asperger compreenderam parcialmente a história, enquanto que os sujeitos típicos foram capazes de absorver todo o conteúdo da história lida.
 
American Psychiatric Association. DSM-IV TR - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Traduzido e Revisado. 4a ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2002.
Asperger H. Die “Autistischen Psychopathen”. In: Kindesalter. Archiw für Psychiatrie und Nervenkrankheiten 1944; 177: 76-136.
Baron-Cohen S, Léslie AM, Frith U. Mechanical, behavioural and intentional understanding of picture stories in autistic children. British Journal of Developmental Psychology 1986; 4: 113-125.
Brito, GNO, Brito, LSO, Paumgarttem, FJR, Lins, MFC. Lateral preferences in brazilian adults: an analysis with the Edinburgh Inventory. Cortex 1989; 25: 403-15.
Fodor, J. Modularity of mind. Cambridge NA: Mit Press;1983.
Hagtvet, BE. Listening comprehension and reading comprehension in poor decoders: evidence for the importance of syntatic and semantic skills as well as phonological skills. Reading and Writing: An Interdisciplinary Journal 2003; 16: 505-539.
Happé, FGE. The autobiographical writings of three Asperger syndrome adults: problems of interpretation and implications for theory. In: Frith, U. Autism and Asperger syndrome. Cambridge: Cambridge University; 1991.p.207-242.
Happé, FGE . Communicative competence and theory of mind in autism: a test of relevance theory. Cognition. 1993; 48: 101-119 .
Happé, FGE. An advanced test of theory of mind: understanding of story characters’ thoughts and feelings by able autistic. J Autism and Dev Dis. 1994; 24(2): 129-152.
Healy JM, Aram DM, Horwitz SJ, Kessler JW. A study of Hyperlexia. Brain and language 1982; 17:1-23.
Kennedy B. Hyperlexia profiles. Brain and Language 2003; 84(2): 204-221.
Losh M, Capps L. Narrative ability in High-Functioning children with Autism or Asperger’s Syndrome. Journal of Autism and Developmental Disorders 2003; 33 (3): 239-251.
Mandler JM, Johnson NS. Remembrance of things parsed: story, structure and recall. Cognitive Psychology 1977; 9:111-151.
Moraes ZR. Influência da alfabetização e da escolaridade no desenvolvimento cognitivo e lingüístico. Temas sobre Desenvolvimento 1995; 5 (27): 18-26.
Moraes ZR, Chiari BM, Perissinoto J. Estilos de linguagem como facilitadores de memória. Pró-Fono Revista de Atualização Científica 2001; 13(1): 54-61.
Nation K. Reading skills in hyperlexia: a developmental perspective. Psychological Bulletin 1999; 125 (3): 338-355.
Navas ALGP, Santos MTM. Distúrbios de Leitura e escrita: teoria e prática. Barueri: Manole, 2002.
Oldifield, RC. The assessment and analysis of handedness: the Edinburgh Inventory. Neuropsychologia 1971; 9: 97-113.
Organização Mundial de Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde: CID-10. 10 ed. São Paulo: Edusp, 1993.
Pastorello LM. Síndrome de Asperger. In: Fernandes FDM, Pastorello LM, Scheuer CI. Fonoaudiologia em distúrbios psiquiátricos da infância. São Paulo: Lovise; 1996. p. 45-59.
Perfetti CA. A capacidade para a leitura. In: Sternberg R. As capacidades intelectuais humanas: uma abordagem em processamento de informações.Trad. Batista D. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. p.73-96.
Perissinoto J. Diagnóstico de linguagem em crianças com transtornos do espectro autístico. In: Ferreira et al. Tratado de Fonoaudiologia: Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2004. p. 933-940.
Rego MGS, Parente MAMP. Hiperlexia na Síndrome de Asperger. In: Assumpção Jr. Transtornos Invasivos do Desenvolvimento Infantil. São Paulo: Lemos Editorial, 1997.
Rubin, Emily; Lennon, L. Challenges in social communication in asperger syndrome and high-functioning autism. Topics in Language Disorders 2004; 24(4): 271-285.
Silman S, Silverman CA . Auditory diagnosis. San Diego:Academic Press, INC. 1991.
Snowling M, Frith U. Comprehension in “hyperlexic“ readers. Journal of Experimental Child Psychology 1986; 42: 392-415.
Spinillo AG. A produção de histórias por crianças: a textualidade em foco. In: Correa J, Spinillo AG, Leitão S. Desenvolvimento da linguagem: escrita e textualidade. Rio de Janeiro: NAU; 2001.
Tamanaha AC, Chiari BM, Perissinoto J, Pedromônico MRM. O desempenho lingüístico no autismo infantil e na síndrome de Asperger. Revista Brasileira de Psiquiatria 2002; 24:100.
Welsh MC, Pennington BF, Rogers S. Word recognition and comprehension skills in hyperlexic children. Brain and Language 1987; 32: 76-96.
 
Contato: rediass@ig.com.br
 

Imprimir Trabalho

Imprimir Certificado Colorido

Imprimir Certificado em Preto e Branco