Código: PIV0669
DESCRIÇÃO E ANÁLISE COMPARATIVA DA ENTOAÇÃO EXPRESSIVA DO PORTUGUêS BRASILEIRO EM FALANTES ESTRANGEIROS: EXPERIêNCIA DESENVOLVIDA NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA |
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Autores: Lidia Becker, Orientador - Dr. Domingos Sávio Ferreira de Oliveira |
Instituição: CLINVOZ - NÚCLEO DE ESTUDOS DA VOZ FALADA E CANTADA E SUAS ALTERAÇÕES |
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ANÁLISE DA ENTOAÇÃO EXPRESSIVA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO EM FALANTES ESTRANGEIROS
“ A ciência sempre quis vigiar, contar, abstrair e castrar os sentidos,
esquecendo que a vida é sonora e que só a morte é silenciosa “.
Jacques Attali
INTRODUÇÃO: CANÇÃO – A MÚSICA QUE FALA
Canção é uma forma musical que une a estrutura rítmica, melódica e harmônica aos dizeres de um texto, que exige do compositor uma habilidade especial para equilibrar texto e melodia. Segundo Tatit, cantar é uma questão de malabarismo, de saber equilibrar elementos musicais, lingüísticos e entoativos da fala coloquial. Ao enfatizar as tônicas do texto, meticulosamente acopladas ao eixo melódico, o compositor cria uma série de tensões e distensões. Ao prolongar a duração das vogais, cria uma tensão necessária para a sustentação das notas pelas pregas vocais, demandando fôlego e energia de emissão. Ao reduzi-las, produz uma progressão melódica mais segmentada, caracterizada pelas interrupções das consoantes, privilegiando o ritmo, daí o tamborilar dos dedos, a marcação do tempo com o pé, e o envolvimento integral do corpo através da dança espontânea ... da fala ao canto, há um processo geral de corporificação, passando-se da forma fonológica à substância fonética. “ É quando as leis musicais passam a interagir com as leis lingüísticas. É quando o cancionista alivia as tensões do cotidiano, substituindo-as por tensões melódicas, em que se inscrevem de forma harmoniosa os conteúdos afetivos e estímulos somáticos . É quando o artista parece gente. É quando o ouvinte se sente também um pouco artista ” (Tatit, 1996)
Não é de admirar que poesia – portanto, palavra - e música sejam inseparáveis desde a Antigüidade. Se os lingüistas estudam a fala que persiste no canto, ocorre-nos deslocar o foco de pesquisa e buscar a voz que canta dentro da fala.
Trabalhar a inflexão é uma arte. Ocorre junto com o ritmo, uma seqüência de movimentos fortes e fracos que marcam o significado das palavras e transparecem no olhar, na expressão corporal e no pensamento do falante. Enquanto o ritmo faz fluir o significado e imprime cadência ao discurso, a inflexão deixa transparecer o sentimento, levando o ser humano a revolucionar os limites da tessitura vocal, alterando-lhe o timbre e a ressonância. A naturalidade de expressão e a precisão no uso das expressões idiomáticas são elementos fundamentais para que um discurso deixe de causar estranheza, na medida em que traduzem um desenho melódico característico da língua praticada.
Sons lingüísticos são internalizados a partir da absorção de estímulos desde a mais tenra idade, formando uma rede de condicionamentos. É natural que os órgãos fonatórios resistam à determinadas posturas que não correspondem aos padrões já internalizados. A estranheza do sotaque estrangeiro apresenta íntima relação com os sons lingüísticos praticados na língua materna do sujeito e com a sua capacidade de percepção de um novo universo, um novo repertório lingüístico. O estudo mais detalhado da fisiologia da voz, da motricidade oral e da fonética, ciência que estuda de que forma são emitidos os sons lingüísticos, fará do especialista em voz um profissional mais capaz de aprofundar-se na experiência de amenizar o sotaque. Entretanto, faremos apenas uma breve alusão às questões articulatórias, que não são parte do universo desta pesquisa, para nos determos nos aspectos entoativos, que apresentaram-se alterados em todos os pacientes observados.
SONS DO BRASIL – breve histórico do português brasileiro
“ Nenhum povo que passasse por inimagináveis requintes de crueldade como sua rotina de vida, através dos séculos, poderia sair dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados ... A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos... ”
Darci Ribeiro
Nos primeiros duzentos anos de colonização portuguesa no Brasil, não existia uma consciência brasileira. Aqui viviam os indígenas, em estado de nomadismo ou em comunidades jesuítas, os negros africanos, considerados mais como coisa do que como gente, e alguns raros brancos e mestiços livres, que viviam de trabalhos esparsos. Segundo o Professor Darci Ribeiro, a língua que se falava no Brasil do século XVI, após o descobrimento, era o nheengatu , uma tentativa de falar o tupi com “boca de português”, rapidamente difundida pelos núcleos populacionais neobrasileiros, com a função de interagir com os nativos em toda a costa brasileira. Os primeiros depoimentos de cronistas e religiosos do século XVI sobre os primórdios da sociedade brasileira, nos idos de 1500 e tal, relataram uma impressão nostálgica e melancólica, um país bucólico e indolente, de clima excessivamente quente e úmido, condições de urbanização e higiene precárias, onde imperavam a solidão e a incomunicabilidade.
O Brasil era uma verdadeira Babel de línguas. A estratégia de colonização previa a desagregação expressa dos escravos oriundos de uma mesma etnia logo ao desembarcar em solo brasileiro, para impedir a formação de núcleos solidários. Por outro lado, os portugueses aqui representavam agrupamentos cuja identidade étnica fora transplantada da Europa, incorporando-se à uma civilização de profunda adversidade; viviam em grande isolamento, muitas vezes doentes, com saudades da família e da terrinha” ( Ribeiro, 1995).
“ Não seria por acaso que desenvolvemos este português vocálico e ritmado, fiel a suas origens indígenas e africanas, língua com características preponderantemente descendentes, da mesma forma que os nossos cancioneiros cantam as nossas canções nostálgicas... “! (Houaiss, 1992 ).
OBJETIVO
Este estudo pretende demonstrar a importância da entoação em fonoterapia e mais específicamente no aperfeiçoamento do português falado por estrangeiros.
Trata-se de demonstrar que o estudo da linha melódica representa uma ferramenta valorosa para promover a fluência e a naturalidade da expressão vocal, materializando o significante em combinações sonoras que encerram um significado comum para uma determinada comunidade lingüística.
METODOLOGIA
Para o presente estudo, foram selecionados 5 vozes de falantes estrangeiros, pertencentes a indivíduos de diferentes nacionalidades, e uma voz de nativo brasileiro, a fim de se proceder à avaliação e à comparação da forma como se apresenta o desenho melódico do português brasileiro em cada uma destas pessoas, a saber: um suíço-alemão, uma argentina, um chileno, um português lusitano, uma irlandesa e uma brasileira, que exerce a função de referência. Cada um destes indivíduos procurou o consultório de fonoaudiologia com a expectativa de dar maior clareza ao seu discurso e a nós coube a missão de estudar o fenômeno e pontuar o caminho e a melhor forma de ajudá-los.
A coleta do material foi realizada em gravação eletromagnética, com microfone interno e registrada em fitas-cassete, posteriormente transpostas para CD, e inseridas no programa GRAM, versão 5-7, com velocidade 5,5KHZ. A representação gráfica da linha entoativa foi obtida sobre a imagem acústica do 2° harmônico.
Como corpus da pesquisa foi elaborado um texto coloquial com ênfase nos fonemas nasais e encontros vocálicos nasalados, característicos do português brasileiro e geradores de elisões, de difícil reprodução para os estrangeiros. Foram selecionados três segmentos representando uma frase afirmativa, uma exclamativa e uma interrogativa. Num primeiro momento, os segmentos selecionados para análise são representados graficamente, onde se evidencia o comportamento melódico de cada sujeito. Em seguida, o padrão fonético do português, representado pelo espectrograma da voz nativa brasileira, servirá de referência para uma análise comparativa da entoação expressiva dos falantes estrangeiros, desenvolvida a partir dos espectrogramas e dos exemplos sonoros selecionados.
RESULTADOS
A interpretação e o efeito causados pela linha melódica têm sido alvo de inquietação no meio lingüístico, constituindo objeto riquíssimo de estudo para a fonoaudiologia.
Os estudos espectrográficos e os exemplos sonoros desenvolvidos nesta pesquisa atestam visualmente aquilo que o ouvido pode perceber e que queremos pontuar, materializando as distinções entre as diversas formas de falar e as variações entoativas que conduzem ao universo das metáforas e permeiam o processo simbólico da comunicação . Torna-se muito claro o fato de que a entoação desempenha uma função lingüística de caráter distintivo, consolidando ou deslocando o amálgama que permeia a relação significado/significante e que produz o sentido da fala.
CONCLUSÃO
Viver em outro país significa um exercício extremamente complexo de ajustes e conexões mentais, a absorção de maneirismos e tradições culturais e uma mudança total de referenciais que vão influenciar o indivíduo e construir a sua fluência na língua local. Parte do trabalho terapêutico contém a responsabilidade de ensinar ao sujeito a perceber o mundo dos sons à sua volta, ativando os seus sentidos.
Entre os sons que permeiam o nosso cotidiano, a música oferece uma linguagem universal, como um espelho da emoção humana. Ela organiza os sons e ajuda a diminuir a barreira da palavra, facilitando em cada indivíduo a capacidade de ser natural, em qualquer língua e diante de qualquer pessoa ou circunstância.
Concluímos ainda que a familiaridade com os parâmetros musicais permite ao fonoaudiólogo uma diversificação de recursos terapêuticos e uma percepção mais aguçada do fenômeno acústico, contribuindo para a otimização do tratamento e para a compreensão mais abrangente do ser humano. |
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