UM INFINITO DE QUESTÕES NO UNIVERSO DA AFASIA
Maria de Jesus Gonçalves
Comentador(a) de Caso
 
Desde a clássica descrição de Paulo Broca, em 1861, sobre uma alteração de linguagem e sua identificação com uma lesão neurológica correlacionada a tal alteração, configurou-se uma importante área de estudos que muito tem contribuído para a compreensão dos fenômenos lingüísticos e suas correlações com as estruturas neurais. Assim, os estudos da chamada afasiologia datam de longa data (Caldas, 1999). Historicamente, na tentativa de tentar descrever e diferenciar os quadros de afasia uma das grandes discussões tem sido a classificação das afasias o que se deve à complexidade e variabilidade existente na afasia. Recentemente, uma das classificações mais utilizadas é o sistema de classificação de Boston (Murdoch,1997). As afasias são definidas como um conjunto de desordens na produção e/ou na compreensão da linguagem oral e/ou gráfica decorrentes de lesões cerebrais adquiridas. Justamente por se tratar de uma alteração de linguagem específica, decorrente de lesão neurológica, o acompanhamento de pessoas com este quadro bem como o estudo e a análise cuidadosa dos fenômenos lingüísticos neles presentes tem lançado luzes sobre o funcionamento da linguagem e suas correlações com as estruturas neurais. A reflexão sobre esta área, com tantas vias possíveis de acesso, ao mesmo tempo que paralisa, instiga. Parar e questionar os caminhos que temos percorrido e as ações que temos desenvolvido pode ser o passo inicial para consolidar o conhecimento e provocar avanços significativos no nosso campo de atuação. Há, então, que ser provocativo e questionador. Pensar sobre os conhecimentos e áreas que o fonoaudiólogo deve dominar quanto atua em afasia é um ponto importante a considerar. O que fazemos? Como fazemos? Com que fazemos? Como podemos contribuir para o avanço do conhecimento nesta área? Vale dizer que independentemente da concepção adotada, uma das preocupações essenciais que o fonoaudiólogo deve ter é o conhecimento sobre linguagem e seu funcionamento, já que daí derivarão as suas ações. A avaliação e reabilitação são dois processos intimamente relacionados. A avaliação deve traçar o perfil de comunicação de cada paciente. Para isso, devem ser mapeados todos os aspectos envolvidos na produção e compreensão tanto da linguagem oral quanto da gráfica. Os modelos da psicologia cognitiva (Eysenck & Keane,1990) e da neupsicologia cognitiva (Ellis; Miller & Sin, 1983) em muito podem contribuir para essa compreensão. Uma questão freqüente em relação à avaliação é sobre a forma como ela é realizada, isto é, que tipo de testes ou baterias de testes são utilizados e para avaliar que tipo de habilidades. Ou em caso de não utilizar testes o que utilizar? Seria possível deslocar o eixo da nossa questão? Poderia-se considerar que ao avaliar um paciente afásico, traçando seu perfil de comunicação, a preocupação maior deva ser a compreensão dos fenômenos observados e o seu registro preciso, de tal forma que a partir dele qualquer profissional possa elaborar um plano de terapia? Na verdade as questões aqui subjacentes são em relação aos parâmetros que utilizamos na avaliação destes pacientes? O que está adequado ou não? Porquê? Ao pensar em terapia fonoaudiológia, novamente muitas questões emergem. Como atuamos na reabilitação do paciente afásico? Planejamos a intervenção a partir do perfil traçado na avaliação? Mais uma vez, talvez seja interessante deslocar o nosso foco e o questionamento deva ser como registramos a nossa intervenção e como controlamos a eficácia da terapia fonoaudilógica. Como determinamos que certos procedimentos são adequados ou não para cada situação? Que evidências temos sobre aquilo que promoveu a evolução do quadro ou sobre que aspectos limitam tal evolução? Que modelos de intervenção propiciam melhor compreensão do processo terapêutico? Contribuições fundamentais para a compreensão dos processos envolvidos na produção e compreensão da linguagem a partir de formas de avaliação e intervenção fonoaudiológia cuidadosamente delineadas podem ser encontrados em Mansur e col. (2002) Parente & Carthery (1998) Senaha (1998). Uma outra discussão a travar em afasia é sobre o uso de sistemas de comunicação alternativa e suplementar naqueles casos em que a fala não está preservada. Claro que, considerando a própria definição de afasia, ao considerar “ausência de fala” fatalmente estaremos diante de questões de linguagem. Entretanto, apesar de o uso de comunicação alternativa e suplementar em afasia ainda ser restrito já há referências sua importância (Beukelman & Mirenda,1992; Beukelman, Yorkston & Reichle, 2000). Por fim, um questionamento central é justamente o que se refere à autonomia e independência do afásico. Até onde vai o processo de reabilitação? Qual o momento da alta? Como proceder à alta de cada paciente? Quais as garantias de volta à vida social ou ao trabalho? A atuação em afasia está permeada de dificuldades que encaminham para muitos desafios. Certamente, viver no universo da afasia só é possível em convivência constante com o infinito de suas questões. Referências Bibliográficas Beukelman, D., Yorkston, K.M.; Reichle, J. Augmentative and alternative communication for Adults with Acquired Neurological Disorders, Baltimore, Paul H. Brooks, 2000 Beukelman, D.; Mirenda, P. Augmentative and alternative communication: management of severe communication disorders in children and adults. Baltimore, Paul H. Brooks, 1992. Caldas, A. C. A herança de Franz Joseph Gall:O cérebro ao serviço do comportamento humano, McGrow-Hill, Lisboa, 1999. Ellis, A. W., Miller, D., Sin, G. Wernicke’s aphasia and normal language processing: a case study in cognitive neuropsychology. Cognition, 15 (13), 111-144, 1983. Eysenck, M. W.; Keane, M. T. Cognitive psychology: a student’s handbook. New York, NY, Lawrence Erlbaum, 1990. Mansur, L.L.; Radanovic, M.; Rüegg, D.;Mendonça, L.I.Z; Scaff, M. Descriptive study of 192 adults with speech and language disturbances, Med. J.,v.120, n.6, São Paulo, 2002. Murdoch, B. E. Desenvolvimento da fala e Distúrbios da linguagem: Uma abordagem Neuroanatômica e Neurofisiológica, São Paulo, Revinter, 1997. Parente. M.A.M.P.; Senaha M.L.H; Carthery, M.T. Contribuição da Neuropsicologia Cognitiva para a reabilitação da leitura e escrita. In: F.C., Capovilla, M.J., Gonçalves, E.C., Macedo (orgs.). Tecnologia em (re)habilitação cognitiva: Uma perspectiva multidisciplinar. São Paulo, SP: EDUNISC - Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, 353-357, 1998. Senaha M.L.H. Reabilitação das dislexias adquiridas: visão da neuropsicologia cognitiva. In: F.C., Capovilla, M.J., Gonçalves, E.C., Macedo (orgs.). Tecnologia em (re)habilitação cognitiva: Uma perspectiva multidisciplinar. São Paulo, SP: EDUNISC - Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, 358-363, 1998.
 
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