OFICINA - VOZ FALADA E SUAS CAMADAS CONSTITUTIVAS
Lucia Helena da Cunha Gayotto
Palestrante
Instituição: PUCSP E USP
 
A escuta apurada da voz humana expõe dimensões e complexidades inerentes ao processo de pesquisa, especialmente em como perceber a voz com atenção às várias camadas expressivas que emergem de suas sonoridades, camadas estas que nos abrem para seus estudos e reflexões. De imediato nos impressiona o poder que a emissão tem de nos afectar e o como isto é realizado: quais os movimentos sonoros/verbais que encaminham sua expressão. A questão que se coloca é que para pesquisar este poder emissivo, é essencial que se adentre o olhar sobre a voz, que necessariamente passa pela pesquisa de suas camadas constitutivas. São consideradas camadas por serem zonas imbricadas à voz, como, por exemplo, de suas constituições com o corpo – posturas, movimentos, ações -; com a música – melodia, acento e ritmo; com o texto – da passagem da leitura para oralidade; e muitas outras relações, como com a psique, com o campo das intenções, situações, circunstâncias. Todas estas instâncias e ainda aquelas diretamente ligadas aos recursos da voz: volume, articulação, cadência, ênfases, entonação, ... A idéia que se propõe, da voz e suas camadas constitutivas, vem reforçar a abrangência deste estudo e, igualmente, de suas experiências práticas. Ela faz ver, ao mesmo tempo, que são muitos os intercâmbios com diversas áreas de atuação profissional: da fonoaudiologia com a música, com o teatro, com a psicologia, com a dança (ou a pesquisa do corpo), com a lingüística, entre outras. Neste resumo, serão abordados alguns conceitos derivados de meu trabalho de pesquisa com voz, como o de corpo vocal, dinâmicas de movimento da voz e ação vocal, todos eles tendo como princípio as camadas constitutivas da voz, advindos de campos teóricos e experimentais. Corpo Vocal – de suas conexões com o CORPO. Partindo-se do pressuposto de que a voz se faz pelo feito do corpo e, vice-versa, o corpo pela voz (GIL, 1997), praticar e investigar as posturas e encaixes do corpo vocal, procurando dilatá-lo (GAYOTTO, 2004). Dinâmicas de Movimento da Voz – ligadas à multiplicidade de MOVIMENTOS SONOROS DA VOZ (seus recursos e possibilidades); Ação vocal – com foco na expressividade, no TEXTO. Conceber e praticar os recursos vocais ligados às forças vitais - sensações, estados e emoções. Especialmente no teatro, trabalhar a expressão de textos relacionando os recursos vocais ao estudo do texto e do personagem, suas situações, intenções, objetivos, subtexto (GAYOTTO, 2000). Detalhando cada um destes conceitos e suas abordagens, o corpo vocal traz o principio de se investigar as posturas do corpo atrelados aos eixos e posturas da voz, encaixes de corpo vocal que são convocados a se dilatar para potencializar a expressão. Para exemplificar, tomemos um recurso vocal: a respiração “sustenta” o corpo e a voz, gerando uma base aos seus eixos e alimentando os fluxos de sonoridade. Este impulso aéreo da respiração “toca” as pregas vocais; quando o som é produzido estabelece-se um encontro do ar com o som. A esta fusão arXsom está implícito um equilíbrio de forças, um jogo de polaridades que é necessário dosar para que se estabeleça uma boa emissão. Segue uma imagem que ajuda a dar consciência do que isto significa na voz: a idéia de que o ar sai e o som entra (Cheng, 1999), para que se perceba o corpo vocal dilatado, como uma combinação de forças necessárias ao aumento do vigor sonoro. Tomando os recursos primários da voz - respiração, freqüência, intensidade, ressonância e articulação – como caminhos expansivos para se atingir um corpo vocal bem trabalhado, as posturas da voz vão se fazendo num jogo de complementaridade entre estes recursos. A estas posturas sonoras combinam-se outras posturas e eixos do trabalho corporal: assim, o conceito de corpo vocal pressupõe a indissociabilidade corpoXvoz, seja em seus princípios ou em suas abordagens terapêuticas. O segundo conceito apresentado, o das Dinâmicas de Movimento da Voz, partiu de pesquisas nas quais a voz é tida como propulsora da criação, e da investigação da matéria sonora e de seus movimentos. Neste resumo, cabe revelar parte dos caminhos e aplicações desta pesquisa, particularmente o das relações entre as Dinâmicas do Movimento descritas por Rudolf Laban (1978) e as Dinâmicas da Voz, apropriação de alguns termos e métodos desta pesquisa de Laban para voz (Gayotto, 2004). Por vezes, as abordagens fonoaudiológicas, quando aplicadas ao trabalho de preparação vocal com profissionais da voz, podem ficar muito restritas a um plano de exercícios e técnicas, que acabam por não contemplar maiores possibilidades artísticas e estéticas. O mesmo pode acontecer quando, em situações de consultório, há uma necessidade de um trabalho com a expressividade de maneira mais “livre”, mais solta, um trabalho menos pautado em exercícios e mais em dinâmicas de improvisação vocal. Para se ampliar as implicações criativas e expressivas da voz, é preciso abrir novas frentes de trabalho com olhares para improvisação, para soltura da voz, para o jogo teatral, para dinâmicas musicais, para trajetórias na dança e no trabalho corporal. Abraçada por estas influências, a idéia desta abordagem, das Dinâmicas de movimento da Voz, é que os movimentos sonoros sejam trabalhados a partir da apropriação do trabalho de Laban, das Dinâmicas de Movimento do Corpo. Nesta adaptação para voz, alguns de seus movimentos sonoros, como ForteXSuave, DiretoXFlexível, RápidoXLento, ContínuoXEntrecortado, são usados como estratégias para se estruturar trabalhos como: 1- Avaliar uma voz, por meio de termos que a definem do ponto de vista técnico (de seus recursos, alterações e características), corporal, comportamental, do ponto de vista de sensações sonoras e de seus timbres, e de adjetivações que façam reconhecer qualidades de uma voz; 2- Estudar os estados psicofísicos (fisicalidade, voz, psique), presentes nas manifestações expressivas, e oferecer métodos para a interpretação (no caso dos trabalhos estéticos) e para a soltura e expressão de emoções de pacientes; 3- Voz cantada e falada: improvisação e trabalho com textos , por meio da combinação destes movimentos sonoros (ForteXSuave, RápidoXLento, etc) como trajetórias expressivas. Há outras estratégias importantes para investigação das dinâmicas da voz, que não seria o caso de especificar neste momento. Para fechar este resumo, veremos o último conceito apontado: ação vocal (Gayotto, 2000). Este trabalho aborda a expressividade em textos (de qualquer natureza), e tem como encaminhamento a constituição de partituras vocais, como resultado da análise e do estudo destes textos e de sua passagem para oralidade. Por este caminho, os recursos vocais são registrados, no texto, ao lado de características interpretativas tais como intenção, objetivo, situação, ações físicas; é assim que se instila e revela, no texto, seus blocos rítmicos, suas intenções, situações, seus pesos, cores e tons. Os conceitos, apresentados neste texto, são abordagens fonoaudiológicas e de preparação vocal, que são aplicáveis tanto em situações terapêuticas quanto em trabalhos estéticos e com a arte. A experiência fonoaudiológica faz ver que é essencial a fundamentação de princípios e conceitos, pois eles nos guiam na elaboração de métodos e procedimentos e, para além disto, nos desvendam inquietações profissionais, necessárias a uma reflexão constante sobre a pesquisa, sobre o trabalho e seus encaminhamentos. O ponto de partida, e com o qual este resumo será concluído, se faz da escuta para as complexidades da voz humana e de suas camadas constitutivas, vasta teia orgânico-afetiva-cultural-social que, gradativamente, nos aproxima do sujeito e de sua subjetividade.
 
Contato: lucia.gayotto@uol.com.br
 

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