PESQUISA EM GAGUEIRA - CONSIDERAÇÕES FONOAUDIOLÓGICAS |
Claudia Regina Furquim Andrade
Coordenador(a) |
Instituição: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO |
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As pessoas que gaguejam desde criança são consideradas gagas persistentes com gagueira do desenvolvimento. Dependendo do estudo de referência entre 0.33% e 1% da população apresenta gagueira do desenvolvimento, sofrendo as conseqüências emocionais e o estigma social decorrente desse distúrbio.
Uma primeira consideração a ser levantada sobre a gagueira é que, por não se tratar de uma entidade nosológica única, a gagueira tem uma característica multidimensional. Se, por um lado, seus atributos necessários são uma taxa elevada de determinados tipos de rupturas, por outro envolve mais que os comportamentos observados. Como apontado por St. Louis em 2001, a gagueira envolve a experiência do falante com as reações negativas – afetivas, comportamentais e cognitivas (a partir dele mesmo e do ambiente) – assim como uma significativa limitação em sua habilidade para participar das atividades da vida diária e o impacto sobre a qualidade de vida de um modo geral (Yaruss e Quesal, 2003).
Em relação aos atributos necessários, a gagueira pode ser definida pelas rupturas involuntárias do fluxo da fala, ocorrem no início das palavras e frases e são caracterizadas por repetições de sons e de sílabas, prolongamentos de sons, bloqueios (posições pré-articulatórias ou articulatórias fixas), pausas extensas, intrusões nas palavras (sons ou segmentos fonológicos não pertinentes). Essas alterações diminuem a velocidade da fala e provocam um grau de rompimento acima da taxa pertinente à idade do falante (Andrade, 2002)
Para Andrade (2004) a avaliação de um fenômeno complexo como a gagueira do desenvolvimento (cujo surgimento se dá entre 18 meses e sete anos durante a fase de aquisição e desenvolvimento da linguagem e se caracteriza como uma desordem crônica, mesmo que apresente períodos cíclicos de fluência) deve ser baseada em metodologia precisa, objetiva e validada. Para a precisão diagnóstica, além do método objetivo de análise da fala deve também haver a comparação com os valores de referência para a fluência (para verificar se o processo avaliado está dentro do padrão esperado ou qual o grau de desvio apresentado).
Como já considerado por Cox em 1993, um componente decisivo e quase impeditivo nos estudos genéticos da gagueira tem sido o critério de seleção dos membros afetados e não afetados, uma consideração que ainda é pertinente e pode ser estendida para os estudos atuais de neuroimagem.
Sobre o assunto é proposta uma análise sobre a metodologia utilizada como critério de inclusão dos indivíduos gagos em 18 pesquisas publicadas entre 2003 e 2005 sobre a gagueira (especificamente textos de mapeamento genético e neuroimagem). Foram analisados 4 textos de genética e 14 de neuroimagem, cujos resultados são apresentados nos quadros 1 e 2.
Quadro 1 - Pesquisas genéticas
Autor Tipo de Estudo Número de Participantes Grupo Controle Critérios de Inclusão
1 seqüenciamento 56 Famílias não recrutados a partir de tratamento; questionário de auto-avaliação para gagueira persistente
2 seqüenciamento 68 Famílias não gagueira há mais de 6 meses; diagnóstico clínico; ≥ 4% de palavras gaguejadas (leve a moderado)
3 seqüenciamento 1567 pares gêmeos não questionário de auto-avaliação para gagueira persistente; entrevista pelo telefone
4 seqüenciamento 199 indivíduos não SSI; 2 juízes; ≥ 4% de palavras gaguejadas
Dos 4 textos analisados em 50% dos estudos houve um critério objetivo para inclusão dos sujeitos gagos em 50% dos estudos houve exclusivamente um critério auto-perceptual.
Quadro 2 - Pesquisas com neuroimagem
Autor Tipo de Estudo Número de Participantes Grupo Controle Critérios de Inclusão
1 EEG 10 (15/25 anos) 7 sem descrição
2 PET 18 (24/50 anos) 20 DSM – leve a severo
3 MEG 9 (22/53 anos) 10 SSI (2 em cada grau de gravidade)
4 PET sem
adultos 10 juízes, sem descrição
5 PET 4 (20/54 anos) 4 SSI (≥ 16% de sílabas gaguejadas)
6 fMRI 34 (18/48 anos) 28 recrutados a partir de tratamento em clinica especializada
7 fMRI 6 (19/37 anos) 6 recrutados a partir de grupo de auto-ajuda e sem concomitantes físicos severos
8 MRI 10
adultos 10 SSI (a partir de leve); diagnóstico de gagueira do desenvolvimento crônica antes dos 8 anos, submetidos a tratamento mas com continuidade do quadro
9 MRI 14
m=33 anos 14 SSI (a partir de leve); diagnóstico de gagueira do desenvolvimento crônica antes dos 8 anos
10 PET e MRI 10 (22/46 anos) 19 2 juízes (1/leve; 2/moderado; 3/severo)
11 PET 13 (20/45 anos) 10 diagnóstico fonoaudiológico
12 MRI 16
m=32 16 SSI (a partir de leve); diagnóstico de gagueira do desenvolvimento crônica antes dos 8 anos
13 PET 4 (30/46 anos) 4 gagueira crônica do desenvolvimento
14 MEG 8
m=33 8 julgamento fonoaudiológico (moderados e severos)
Dos 14 textos analisados em 29% dos estudos houve não houve descrição ou houve descrição insuficiente do critério para inclusão dos sujeitos gagos. Em 35% dos estudos houve exclusivamente o critério perceptual (juízes 21%; recrutamento 14%). Em 36% dos estudos houve um critério objetivo de inclusão dos sujeitos gagos. Em nenhum dos estudos foi apresentado o critério de inclusão no grupo controle.
Por essa breve e simples análise é possível considerar que embora tenha havido uma enorme evolução nos métodos da biologia molecular e da neuroimagem não houve uma significativa evolução quanto aos critérios de inclusão e diferenciação dos participantes dos estudos, nas áreas, quer para os gagos quer para o grupo controle.
Considerando a variabilidade implícita nos conceitos de gagueira e de fluência (existe uma razoável divergência entre os pesquisadores da área específica sobre esses conceitos e a possibilidade de pontuar a fala fluente ou disfluente) é condição necessária que sejam selecionados criteriosamente os participantes dos estudos (métodos objetivos e princípios de avaliação consensuais e de aplicação por profissional com expertise na área). Não é possível compreender a gagueira sem a compreensão do indivíduo fluente. O primeiro passo é o estabelecimento dos valores de referência pertinentes aos diversos grupos etários (crianças, adolescentes, adultos e idosos). Um valor de referência representa a variação possível, a manifestação da diferença de um determinado aspecto, entre as pessoas, apesar de todas essas pessoas serem classificadas sob uma mesma legenda. As diferenças são realmente esperadas, e naturais, à medida que são causadas por variações - tanto de natureza genética quanto ambientais - obtidas quando se tenta medir atributos dos indivíduos (Andrade, 2005).
O segundo passo é conhecer a gagueira, como fenômeno. Para isso é muito importante que, como apresentado por Foucault (1971) e discutido por Andrade (1997), seja espacializado o distúrbio, que o mesmo se torne conhecido. Conhecer sua origem e sua distribuição na população, formar seu quadro nosológico (sua figura/imagem, seu sistema fundamental de relações - envolvimentos, subordinações, divisões, semelhanças, etc). Em referência aos autores, nesta configuração inicial é necessária a diferenciação do que é próprio do indivíduo, daquilo que constitui o núcleo essencial e verdadeiro do fato patológico, portanto, é preciso cuidado para distribuir os sintomas que são próprios da gagueira e a acompanham necessariamente, daqueles que dependem do indivíduo com a gagueira (disposições pessoais, características de personalidade, idade, estilo de vida) e que nada mais são que \\\"acidentes\\\" em relação ao núcleo essencial.
Dessa caracterização dependerá o tipo e adequação da intervenção (de pesquisa, diagnóstica e/ou de tratamento), o sucesso da cura depende do conhecimento da ordenação nosológica da doença. Se essa essência for mascarada, o indivíduo real estará oculto e a intervenção poderá ser inadequada. Se o tratamento for inadequado, essa intervenção poderá confundir e contradizer a essência verdadeira da gagueira, tornando-a irregular e na realidade, intratável. O quadro nosológico é um referencial, mas o distúrbio se manifesta é no indivíduo, e nesse espaço sofre modificações, podendo gerar uma nova forma patológica, portanto, é no indivíduo que podem ocorrer as justaposições, as sucessões e até a mistura de diferentes distúrbios ou formas do distúrbio gerando as complicações, as formas mistas, as sucessões regulares e as seqüelas. O essencial não é o conhecimento de sua localização ou de seu tempo de duração e sim, o conhecimento da qualidade da interrelação distúrbio-indivíduo.
A percepção do profissional deve estruturar-se para a percepção das particularidades, o doente é a doença que adquiriu traços de singularidade. Na espacialização primária, a doença é situada num espaço de homologias; na secundária são esquecidas as estruturas coletivas - do olhar de grupo para uma astuta percepção do singular - é a proximidade, o olhar e o elo terapeuta-paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, C. R. F. de - ABORDAGEM NEUROLINGUÍSTICA E MOTORA DA GAGUEIRA. In: Tratado de Fonoaudiologia. Org. Leslie P. Ferreira; Débora M. Befi-Lopes; Suelly C.O Limongi. Roca. São Paulo. 2004. p. 1001-1026. ISBN 85-7241-550-5 (1076 pag.).
ANDRADE, C. R. F. Diagnóstico e Intervenção Precoce nas Gagueiras Infantis. 2ª. Edição Modificada. Carapicuíba: Pró-Fono, 2005 (no prelo).
ANDRADE, C. R. F. História natural da gagueira. Estudo I: perfil da fluência. Pró-fono (Revista de Atualização Científica), v. 14, n. 3, p. 351-360, 2002.
ANDRADE, C.R.F. Gagueiras infantis: atualização sobre a determinação de fatores de risco e de condutas. Pediatria (São Paul ), São Paulo, v. 19, n. 2, p. 152-158, 1997.
COX, N. Stuttering: a complex behavior disorder for our times? American Journal of Medical Genetics, v. 48, p. 177-178, 1993.
FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. Petrópolis, Vozes, 1971.
ST. LOUIS, K. O. Living with Stuttering. Morgantown: Populore, 2001. 354p.
YARUSS, J. S.; QUESAL, R. W. Stuttering and the international classification of functioning, disability, and health (ICF): an update. Journal of Communication Disorders, 2003.
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