PESQUISA QUALITATIVA EM VOZ: DIVERSIDADE TEÓRICA-METODOLÓGICA |
Emilse Aparecida Merlin Servilha
Palestrante |
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As pesquisas em Fonoaudiologia têm buscado construir uma metodologia própria da área, de modo a consolidá-la como ciência consistente e reconhecida. Nesse caminhar, o que se verifica são vários empréstimos teórico-metodológicos de outras áreas, em especial aqueles advindos da Psicologia, Saúde Pública, Lingüística, entre outras, no entanto, com privilégio do olhar fonoaudiológico.
Dentro desse panorama científico, o presente texto tem por objetivo discutir o design metodológico utilizado na produção da tese da pesquisadora, cuja meta foi investigar como as características da voz docente podem participar da mediação pedagógica em sala de aula.
O referencial teórico-metodológico teve como pilares a abordagem histórico-cultural de Vygotsky e outros autores contemporâneos, além da teoria enunciativa proposta por Bakhtin. A escolha desses autores e o método de investigação proposto por eles não foi aleatória e sim decorrente de uma dada concepção de homem e de mundo e não um recurso independente dela. Da mesma forma, a construção e interpretação dos dados obedeceu a essa regra (Vygotsky, 1987 e 1988).
Vygotsky (1988) argumenta que no estudo das funções psíquicas superiores deve ser privilegiada a análise dos processos e não dos objetos, evidenciando mais suas mudanças que o produto acabado, para não se correr o risco de valorizar uma imagem rígida ou fotográfica do comportamento, desprovido de sua dinamicidade, prerrogativa de uma concepção dialética.
O método de Vygotsky inclui vários domínios genéticos, inclusive o microgenético que procura a origem dos processos psíquicos. Os estudos microgenéticos distinguem-se pela preocupação em descrever minuciosamente e destacar os detalhes aflorados no comportamento individual e nas interações sociais, abrangendo até a flexibilidade da comunicação e outros indícios do relacionamento interpessoal como olhares, hesitações, etc., pois, para a análise da origem dos processos psíquicos não basta a explicitação das habilidades gerais do sujeito ( De Carlo, 1997).
Tendo por propósito investigar como a voz do professor participa da mediação pedagógica em sala de aula, os procedimentos usados inspiraram-se no nível microgenético, pois o caminho metodológico incluiu a análise de minúcias das ocorrências em sala de aula, no intuito de captar o jogo interativo que envolvia docente e discentes.
O estudo requereu, também, a utilização de uma perspectiva que considerasse o homem como ser social e histórico, e a linguagem como lugar de destaque no contexto das relações intersubjetivas. A linguagem entendida como produto cultural, em movimento, e produzida nas situações reais entre os homens socialmente organizados, ajudou tanto a construir quanto a analisar os dados nesse estudo (Bakhtin, 1992 e 1997).
O estudo de processos interativos, que solicita a análise detalhada de situações em tarefas compartilhadas, necessita de que estas mesmas situações possam ser revistas continuadamente. A videogravação permitiu essa recorrência e a pesquisadora pode rever, tanto quanto necessário, as ocorrências intersubjetivas para desvendar as práticas sociais implicadas e os processos em curso.
No que concerne à análise da voz docente, esta pautou-se pelo referencial técnico fonoaudiológico específico, ancorado na proposta de Ferreira (1992), na qual a voz é entendida numa visão discursiva e a avaliação perceptiva das características vocais do professor como pitch, loudness, entoação e outras, foi norteada pelo referencial de Behlau e Pontes (1995).
Participaram deste estudo, três professores da primeira série do Curso de Pedagogia, do período noturno, de uma universidade do interior do Estado de São Paulo, os quais ministravam disciplinas introdutórias e, portanto, com contato com a classe toda de alunos, por ser esta uma situação bastante comum na docência universitária.
A opção por docentes deste Curso adveio da curiosidade e interesse em saber como trabalham professores engajados na formação docente e o papel da voz neste contexto. Destaca-se que o número de participantes encontra-se relacionado à opção de se realizar uma pesquisa de ordem qualitativa, na observação e análise de processos dialógicos, cujo método pode mostrar-se desvantajoso em relação ao experimental quando se avalia o tempo e a mão-de-obra necessárias para sua viabilização, dada a necessidade das muitas transcrições minuciosas (Perroni,1996). Além disso, não se procurou, com este trabalho, o cumprimento da chamada representatividade presente em outros trabalhos científicos pela opção teórico-metodológica adotada.
Os professores foram sujeitos focais, mas foi indispensável considerar os alunos, tendo em vista que o interesse estava dirigido aos processos de interlocução e nos efeitos que as variações de voz do professor têm sobre a participação dos mesmos e sobre as possibilidades de ocupação de turnos. Decidiu-se, então, que seria bastante interessante, escolher professores de uma única turma de modo que os alunos fossem sempre os mesmos. Isto deu margem às análises comparativas, pois se pôde registrar diversificadas reações dos alunos frente aos diferentes professores, inclusive no mesmo dia, pois as aulas dos docentes participantes se sucediam em um mesmo período de aula.
Quanto aos procedimentos, os professores foram convidados a participar via contato da pesquisadora com a vice-diretora da Faculdade, que se incumbiu de transferir, em momentos de reunião, o convite aos docentes. Apenas uma professora, deliberadamente, se ofereceu para participar. Após o início das gravações de suas aulas e a presença da pesquisadora tornar-se freqüente no espaço de realização das aulas, dois outros professores da mesma turma integraram-se à pesquisa.
Perroni (1996) afirma que ao se realizar uma pesquisa, tanto a escolha dos sujeitos e procedimento de obtenção dos dados quanto à forma de análise, já se constituem em dois tipos de filtros de seleção. A consciência desse fato pelo pesquisador constitui-se em um fato de importância no processo de busca pela construção do conhecimento.
No primeiro contato entre a pesquisadora e os docentes, realizou-se com os mesmos uma entrevista dirigida, composta por perguntas abertas, para conhecer suas concepções acerca da docência e educação, e dados sobre a disciplina ministrada e a classe. Foram realizadas vídeo e audiogravação das aulas, com periodicidade semanal, durante 5 meses. Observações e anotações de campo foram utilizadas para contextualizar o material documentado filmado (tipo de aula, atividade em ocorrência, etc.) e para acrescentar esclarecimentos quanto às situações gravadas.
Em seguida, procedeu-se à transcrição de todas as fitas de áudio, as quais foram complementadas pelas videogravações, o que possibilitou detalhar o contexto em que as interlocuções eram atualizadas, impossíveis de serem salientadas sem a ajuda da câmera de vídeo já que este trabalho buscava o movimento interativo entre os participantes da aula.
A áudio e videogravação, além da presença concreta da pesquisadora em sala de aula e anotações de campo, buscaram cobrir ao máximo as ocorrências em sala de aula, no entanto, apenas partes, fragmentos deste universo de pequenos mundos conseguiu ser captado, não se tendo a ilusão da completude, da integralidade. Ainda assim, as cerca de quarenta horas de gravação certamente forneceram condições necessárias para a análise.
As transcrições integradas de áudio e vídeo das aulas e o rever sistemático das fitas possibilitaram delinear a presença de uma estrutura, composta por fases e subjacente ao desenvolver da aula. Procedeu-se, então, a caracterização global da comunicação do professor na interação, em cada uma dessas fases da aula, incluindo o padrão básico de emissão quanto a pitch, loudness, qualidade, articulação e velocidade decorrente da avaliação perceptiva segundo critérios fonoaudiológicos, além dos recursos expressivos (gestos, contato visual com os alunos, mímica facial) e assinalaram-se possíveis variações. A análise desses indicadores foi relacionada à ocupação dos turnos e às variações no trabalho conceitual durante a atividade.
Em uma etapa posterior, realizou-se a seleção de uma aula de cada professor que fosse representativa de seu conjunto, por mostrar tendências predominantes e ocorrências peculiares no que respeita às ocorrências de envolvimento dialógico entre professor e alunos. Criou-se para essas, individualmente, uma grade, um esquema com o qual procurou se colocar a enunciação do professor, dos alunos, a contextualização da situação e a análise das variações nas inflexões vocais do professor, de modo correlato no eixo temporal.
Nestas aulas específicas, procedeu-se a seleção e transcrição detalhada de episódios dialógicos explicitando as marcas entonacionais, pausas, ênfase dada pelo pitch, intensidade, velocidade e entoação para caracterizar a voz; e com descrição dos acontecimentos dialógicos, em termos de ocupação de turnos e de aspectos intersubjetivos, para a interpretação dos eventos, dentro das diretrizes da abordagem microgenética, mais especificamente as curvas entonacionais da voz docente e a ocupação dos turnos na interlocução (quem fala e como fala - interrogação, exclamação, ironia, etc.); as variações entonacionais da voz docente e possibilidade de criar situações promotoras à elaboração de conhecimento (como os enunciados vão compondo a elaboração sobre os temas do conhecimento - composições partilhadas ou “monológicas”, etc.).
Finalmente, foram apontados aspectos convergentes e divergentes do grupo de sujeitos, quanto ao uso da voz no processo dialógico e destaque foi dado às variações intra-sujeitos.
Concluindo, a análise dos dados esteve direcionada para a articulação da análise das características da voz, dentro de parâmetros fonoaudiológicos, com a análise microgenética dentro do contexto de ensino-aprendizagem.
As várias etapas da pesquisa, previstas em seu método, possibilitaram atingir o objetivo proposto para o estudo.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997
_____________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª ed. São Paulo: Hucitec,
1992
BEHLAU, M. e PONTES, P. Avaliação e Tratamento das Disfonias. São Paulo: Lovise,
1995
DE CARLO, M. M. R. P. Por Detrás dos Muros de uma Instituição Asilar - Um Estudo
Sobre o Desenvolvimento Humano Comprometido pela Deficiência. Tese de
Doutorado. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, 1997
FERREIRA, L. P. A Avaliação da Voz : O Sentido Poderia Ser Outro? In: L. P. FERREIRA (Org). Um Pouco de Nós Sobre Voz. Barueri: Pró-Fono, 1992, p. 29-38
PERRONI, M.C. O que é Dado em Aquisição de Linguagem? In: M. F. P de Castro (Org.). O Método e o Dado no Estudo da Linguagem. Campinas: UNICAMP, 1995, p.15-30
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes,1988
_____________ .Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987 |
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