REFLETINDO SOBRE O TRATAMENTO DOS DISTÚRBIOS DE FALA: ASPECTOS FONÉTICOS, FONOLÓGICOS E AUDITIVOS |
Luciana Paula Maximino de Vitto
Palestrante |
Instituição: FOB-USP |
|
A linguagem é um sistema que permite às pessoas se comunicarem com uma combinação ilimitada de idéias, usando uma seqüência altamente estruturada de sons (ou gestos). É uma adaptação de toda a espécie e está baseada em uma rede neural de complexidade1. A fala é o ato motor que expressa a linguagem2. Nesta perspectiva, o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem e da fala, estão intrinsecamente relacionados.
O desenvolvimento adequado da fala da criança depende, além do desenvolvimento cognitivo e fonológico, da integridade do sistema nervoso central, bem como de todas as estruturas miofuncionais envolvidas neste ato motor.
Os distúrbios de fala compreendem alterações referentes à produção dos sons, os quais prejudicam principalmente a inteligibilidade desta. A caracterização destes distúrbios pode englobar desde a omissão, a substituição até a distorção de fonemas da língua que a criança está inserida. Zorzi (1993)3 propõe uma classificação para as alterações de fala em fonológicas, neurogênicas e musculoesqueléticas.
As alterações fonológicas englobam os aspectos lingüísticos das alterações da fala. Classicamente o distúrbio fonológico é definido como uso inadequado dos sons, em vista de uma dificuldade de organização mental e classificação destes que ocorrem contrastivamente na língua4. É uma desordem lingüística que se manifesta pelo uso de padrões anormais no meio falado da linguagem, esta definição enfatiza que o transtorno afeta o aspecto fonológico da organização lingüística e não a produção mecânica articulatória 5 Portanto, este diagnóstico é utilizado para referir crianças com dificuldades específicas para o aprendizado da linguagem falada, afetando a produção de fala na ausência de fatores etiológicos detectáveis. As diferentes definições de distúrbio fonológico, descritas na literatura, ressaltam a importância da produção de fala, o que nos remete a elucidar todos os fatores subjacentes a esta produção, como a execução articulatória dos fonemas pela criança, a maturidade neurológica para tal e as estruturas anatômicas.
A dicotomia entre linguagem e fala é ambígua quando se refere ao aspecto fonológico. A fonologia é um elemento intermediário à realização acústica e os sistemas lingüísticos, que incluem categorias fonêmicas e regras de combinação para formar palavras, além da semântica e sintaxe.
Em 1976, com a publicação de Phonological disability in children de David Ingran6 iniciou-se uma pequena revolução na terapia de fala. A introdução da naálise dos processos de simplificação fonológica tornou se uma ferramenta para descrever tanto o processo normal de crianças, como a conduta lingüística daquelas com distúrbios de fala. A análise fonológica permitiu avanço na definição dos objetivos da intervenção com fundamentação na eliminação dos processos fonológicos atrasados ou desviantes.
A abordagem psicolingüística influenciou na ultima década a intervenção dos distúrbios fonológicos. O modelo cognitivo do processamento de fala busca explicar como se processam nos seres humanos a informação que lhes chega do ambiente, via sensorial, auditiva e visual, para acessar o léxico e as representações mentais que codificam esta informação em vários níveis. Este modelo prioriza que a estimulação sensorial ativa representações mentais previamente armazenadas na memória em níveis de diferentes complexidades, tanto no que se refere ao aspecto receptivo quanto expressivo7.
Neste prisma, o desenvolvimento das habilidades perceptuais são fatores importantes para a aquisição do aspecto fonológico da linguagem e, conseqüentemente, da fala. O aspecto perceptual auditivo para a criança em fase de desenvolvimento abrange categorizar os sons considerando as variantes do mesmo fonema e as distinções capazes de apontar diferenças de significado e, não simplesmente, discriminar sons diferentes. As características dos sons da fala, tanto as visuais como as auditivas, estão interligadas e as crianças utilizam-se de leitura labial da mesma maneira que das informações auditivas na aprendizagem do sistema fonológico. As dificuldades perceptuais alteram a aprendizagem geral e as interpretações corretas das informações vindas do meio ambiente trazendo influências negativas para o desenvolvimento da linguagem de forma global(1-7).
A percepção e a produção de fala são eventos correlacionados, a habilidade para produzir fala de forma inteligível depende das habilidades da criança em processar as características acústicas dos fonemas e da prosódia da fala do outro.
Estes pressupostos teóricos evidenciam a relevância de modelos de intervenção nos distúrbios de fala de origem fonológica que relacionem os canais de entrada e saída, ou seja, as habilidades perceptivas, com as representações fonológicas armazenadas na memória e relacionadas às representações lexicais.
O objetivo primordial da intervenção dos distúrbios de fala de origem fonológica é a estimulação do desenvolvimento de um sistema fonológico inteligível de forma a facilitar o aparecimento de novos padrões de fonemas com o enfoque nos processos fonológicos, o que possibilita a utilização de estratégias que ressaltem a função comunicativa da linguagem8.
Vários modelos de intervenção com base fonológica têm sido descritos na literatura e estão fundamentados na reorganização cognitiva do sistema fonológico e na capacidade de generalização da criança. Ressalta-se o Modelo de ciclos, Modelo de ciclos modificado, pares mínimos, oposições máximas, “ABAB-retirada”, Modelo implicacional de complexidade de traços, metaphon, entre outros.
Cada um destes modelos tem suas especificidades e estratégias próprias especialmente no que se refere às técnicas e as teorias de suporte, no entanto, alguns aspectos propostos pelo modelo tradicional e que foram utilizados por anos na terapia de fala, ainda tem base comum, como a percepção auditiva e produção fonética.
Os programas de treinamento da percepção convergem basicamente para a conscientização da criança quanto às características perceptuais do fonema alvo do tratamento, com enfoque na atenção, discriminação e memória. A retroalimentação destes sistemas perceptivos deve ser parte do treinamento.
Outro aspecto a ser descrito refere-se a busca da correlação entre o processamento fonológico e as bases neurais envolvidas neste processo. Estudos desta natureza evidenciam a importância do substrato biológico das áreas do córtex associativo, região perisilviana, preferencialmente no hemisfério esquerdo em demandas do processamento fonológico9.
Portanto, conclui-se que o aspecto fonológico da linguagem e as habilidades subjacentes, os aspectos perceptivos auditivos, devem ser avaliados e analisados em todos os casos de distúrbios de fala. Como parte desta reflexão e diante de todos os pressupostos apresentados cabe notificar também, que a terapia de fala passou por diferentes concepções, fonética articulatória, fonologia e processamento cognitivo da fala, que favoreceram o direcionamento da avaliação e intervenção dos distúrbios de fala, permitindo assim, maior integração das habilidades lingüísticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- KANDEL, E. R.; SCHWARTZ, J. H.; JESSELL, T.M. Princípios da Neurociência. São Paulo: Manole, 2003
2- MARCHESAN, I Alterações de fala de origem musculoesquelética In: FERREIRA, L P, BEFI-LOPES, D M, LIMINGI, S C O Tratado de fonoaudiologia São Paulo:Roca, 2004, 292-303.
3-ZORZI, J L Aquisição da linguagem Infantil: desenvolvimento, alterações e terapia. São Paulo:Pancast, 1993.
4-GRUNWELL, P The nature of phonological disability in children. London: Edward Arnold, 1981.
5-MOTA, H B Terapia fonoaudiológica para os desvios fonológicos. Rio de janeiro: Revinter, 2001.
6-INGRAM, D. Phonological disability in children. London: Edward Arnold, 1976.
7-CERVERA-MÉRIDA, JF, YGUAL-FERNÁNDEZ, A Intervención logopédica em los transtornos fonológicos desde el paradigma psicolingüístico Del processamento de habla. Rev Neurol 2003, 36(supl 1), S39-S53.
8- WERTZNER HF, SOTELO MB, AMARO L Analysis of distortions in children with and without phonological disorders. Clinics. 2005 Apr;60(2):93-102.
9-DIETZ N A, JONES K M, GAREAU, L, ZEFFIRO TA, EDEN G F. Phonological decoding involves left posterior fusiform gyrus. Hum Brain Mapp. 2005, 2(jun) 61-78.
|
|
Contato: lupvitto@uol.com.br |
|

Imprimir Palestra |
|