DIVERSIDADE TEÓRICO-METODOLÓGICA NA PESQUISA EM LINGUAGEM |
Luiz Augusto de Paula Souza
Palestrante |
Instituição: PUC-SP |
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Difícil negar a existência de uma tendência à polarização entre as chamadas pesquisas quantitativas e qualitativas, na ciência em geral e, no nosso caso, nas ciências da saúde. Parece haver uma naturalização da oposição entre tais perspectivas de pesquisa, ou seja, foi alçada à condição de senso-comum a idéia de que, mais do que diferenças, tais abordagens comportariam valorações: pesquisadores e simpatizantes de uma ou outra abordagem partiriam da premissa de uma superioridade metodológica da modalidade que praticam e/ou defendem.
Quando se pensa e se procede assim, não é incomum ver pessoas ou grupos “torcendo o nariz” para pesquisas (e para as concepções teóricas subjacentes) com metodologias distintas daquelas que utilizam. Muitas vezes, sob pretensos argumentos científicos, destila-se, na verdade, uma miríade de preconceitos acerca de conhecimentos válidos, apenas porque não foram produzidos nesta ou naquela perspectiva teórico-metodológica.
Nada mais precário e contra-producente do que esta “cultura do amesquinhamento”, da desqualificação em relação àquilo que difere de determinados dogmatismos, por mais dominantes ou hegemônicos que possam ser. Situação ainda mais grave se certas características desejáveis nos pesquisadores forem consideradas: atitude não preconceituosa, curiosidade e gosto pela diversidade dos fenômenos naturais e humanos, entre outras. Considerando estas características, visões restritivas e que impliquem meros juízos de valor seriam inadmissíveis.
No entanto, não é bem isso que acontece, temos um cenário confuso e, às vezes, ambivalente, no qual o desejo de expandir a produção de conhecimento científico na Fonoaudiologia é anunciado, mas se fomenta pouco a variação e a pluralidade teórico-metodológica.
Há pouco a dizer para aqueles cuja visão é de que o problema consiste em uma disputa para saber, ao fim e ao cabo, quais os “melhores” tipos de pesquisa e, por decorrência, quais os “melhores” pesquisadores, os que, supostamente, deteriam a “verdade” sobre como fazer ciência em Fonoaudiologia. Diferentemente, para aqueles cuja visão é pautada pelo envolvimento com a diversidade teórico-metodológica, a partir da qual aprendem a fazer pesquisa, a desenvolver o senso-crítico e o gostar da multiplicidade de vetores de investigação sobre a linguagem; para estes as chances de avançar é mais promissora, muito embora implique dificuldades em termos do enfrentamento da naturalização da competição que acabou de ser referida, como também em encarar a resistência entrincheirada daqueles que tiram proveito de certos estados de coisas e de dinâmicas institucionais. Em todo caso, é com quem se dispõe à diversidade e a tais enfrentamos que interessa conversar.
É prudente, neste ponto, fazer um ressalva: esses primeiros comentários se referem ao plano da polêmica e da opinião, numa recusa às leituras de senso-comum sobre abordagens metodológicas. Num outro plano de reflexão, difunde-se na atualidade o debate sobre o chamado “materialismo eliminativo” , no qual o avanço de uma ciência ou, mais precisamente, de uma teoria poderia colocar em cheque as verdades de outra. Ao que tudo indica, tal efeito não encontra respaldo empírico, uma vez que uma ciência teria que chegar a uma objetividade absoluta (o que não parece possível) para invalidar (não esta ou aquela proposição) toda a arquitetura de outra, construída em bases empíricas e conceituais diferentes. Feita a ressalva, voltemos à linha de raciocínio anterior.
O que foi dito em favor da diversidade teórico-metodológica poderia passar a impressão de um vale-tudo na produção de conhecimento na Fonoaudiologia, mas isto só aconteceria se a pluralidade teórico-metodológica fosse entendida como uma espécie de afrouxamento do rigor necessário à pesquisa científica, como de resto a qualquer investigação sistemática, seja ela no campo da ciência, da filosofia ou da arte. Não se trata disso, o rigor teórico-metodológico é indispensável, pois concerne à consistência e à coerência interna dos elementos (referências teóricas, dados, formas de coleta e de tratamento, interpretação, etc.) que compõem a investigação.
Porém, o rigor não é exclusividade deste ou daquele tipo de pesquisa, mas condição de possibilidade para qualquer pesquisa com pretensões científicas, independentemente de seu método e de seu universo teórico de referência. Além disso, a pluralidade teórico-metodológica diz respeito à necessidade de uma gama de teorias e de métodos para se abordar as várias faces dos fenômenos naturais e humanos, assim como para abarcar suas possibilidades de interpretação e representação; em ambos os casos trata-se de situações e contextos complexos, multifacetados, portanto não redutíveis a uma única vertente teórica e metodológica.
Se for assim, é possível olhar com outros olhos para as pesquisas quantitativas e qualitativas, bem como para as relações existentes entre elas.
Em linhas bastante gerais, pode-se definir estas duas perspectivas de pesquisa do seguinte modo: -Pesquisa quantitativa: “lida com números, usa modelos estatísticos para explicar os dados, e é considerada pesquisa hard”. – Pesquisa qualitativa: “evita números, lida com interpretações de realidades (...), e é considerada pesquisa soft” . Consistem em abordagens bastante diferentes, opostas até, do ponto de vista de suas fundamentações teóricas e epistemológicas: são modos distintos de pensar e compreender o mundo. No entanto, distintos e opostos, não quer dizer excludentes e antagônicos, ao contrário, não há quantificação de “algo” sem que ele seja, de algum modo, qualificado. Por exemplo: não é possível quantificar uma doença ou um transtorno sem antes defini-los, ou seja, qualificá-los enquanto categorias mórbidas.
Do mesmo modo, não há qualidade que não possa ser representada e mensurada em sua expressão ou em seus efeitos. Por exemplo: noções reais, mas abstratas, como o “amor” podem ser medidas pelos seus efeitos e pelas maneiras como são representadas pelas pessoas numa dada época ou ao longo da história. Do mesmo modo, o sofrimento e os significados dos transtornos de linguagem podem ser mensurados em seus efeitos discursivos e de comportamento, em uma única pessoa – num estudo de caso clínico – ou numa população de sujeitos acometidos por determinado transtorno.
Além disso, uma pesquisa quantitativa, necessariamente, terá que esposar dimensões qualitativas, pois precisará interpretar seus resultados numéricos, atribuindo-lhes significado, ainda que por meio de escalas de quantidades ou por remissão a um conjunto de qualidades tomadas como padrão ou parâmetro de referência (os grupos controle, por exemplo).
Ainda que de maneira diversa, acontece coisa assemelhada com a pesquisa qualitativa, pois ela interpreta realidades tangíveis pela sua prevalência, persistência ou repetição. Ainda que sua preocupação não seja numérica ou estatística, a pesquisa qualitativa se apóia na quantidade de ocorrências e de repetições da realidade a ser estudada, no sentido de constituí-la como objeto de pesquisa. Aqui uma nova ilustração clínica pode ajudar: um sintoma, para alcançar tal status, precisa ser uma ocorrência, além de intensa, persistente e que se repete, e isto configura sua “quantidade”, isto é, ele é também quantitativamente relevante, chamando a atenção do clínico e/ou do pesquisador, a ponto de produzir inquietações e necessidades que justifiquem a investigação de seus sentidos e de suas razões de ser.
Por fim, pesquisas qualitativas e quantitativas, como também as mistas (quanti/quali), não são melhores ou piores umas em relação às outras. Enunciar o problema nesses termos corresponde a falseá-lo. Na verdade, o que deve definir a escolha do método de pesquisa é a natureza do problema a ser investigado, ou seja, uma abordagem metodológica é adequada quando fornece o caminho e as ferramentas indispensáveis para a resolução do problema de pesquisa, o resto é opinião, preferência ou gosto pessoal, e gosto não se discute, mas também não cabe no trabalho científico. |
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Contato: luizad@uol.com.br |
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