ESCOLARIDADE E ESCRITA |
Jaime Luiz Zorzi
Palestrante |
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Um dos objetivos fundamentais da educação é o de mediar a relação do aluno com o conhecimento e, para tanto, a linguagem, nas suas formas oral e escrita, desempenha um papel fundamental. Mais especificamente, o acesso ao conhecimento depende do domínio da linguagem uma vez que ele tem sido, predominantemente, veiculado via oralidade e escrita.
Dentro do sistema educacional, a importância da língua escrita é tão grande que, ao lado de seu objetivo geral e amplo de tornar o conhecimento acessível, uma das metas prioritárias da escola é a de alfabetizar, ou seja, levar o aluno a dominar a linguagem escrita para que, por meio dela, ele possa alcançar conhecimentos, assim como se expressar. Desta forma, a língua escrita, antes que possa tornar-se um meio efetivo para desenvolver conhecimentos, é colocada no papel de objeto de conhecimento. Pode-se afirmar que há uma dupla necessidade: aprender a ler e a escrever, assim como aprender a utilizar a leitura e a escrita para aprender.
O ensino da leitura e da escrita, portanto, tem uma ênfase especial na atuação educacional em termos das etapas iniciais do ensino fundamental. Entretanto, aprender a ler e escrever pode ser um grande desafio para muitos e dificuldades, de graus variáveis, podem surgir durante este processo. Neste sentido, um dos aspectos que chamam a atenção de educadores e mesmos dos pais, diz respeito à ortografia, isto é, ao domínio da escrita convencional das palavras. Pode ser difícil, para muitas crianças, compreender como as palavras devem ser grafadas, o que pode ser observado em uma série de alterações ortográficas, como omissões e substituições de letras.
Considerando-se, inicialmente, a criança em seu processo de aprendizagem, está claramente evidenciado que a apropriação do sistema de escrita é um processo evolutivo, que se dá de modo progressivo na medida em que ela tem oportunidades para interagir com a escrita e com pessoas que escrevem. A partir de tal interação, a criança vai elaborando hipóteses ou idéias a respeito do que é a escrita, hipóteses que, por sua vez, revelam diferentes graus de conhecimentos que estão sendo por ela constituídos e organizados.
Nas etapas iniciais de sua longa caminhada, a criança não chega a compreender as relações entre a oralidade e a escrita, o que caracteriza a chamada hipótese pré-silábica. Uma grande e fundamental descoberta tem lugar quando ela passa a relacionar as características sonoras da palavra falada com as possibilidades de representação gráfica. Este conhecimento, por seu lado, parece se tornar possível na medida em que, em termos de conhecimento fonológico, a criança atinja o nível da sílaba.
Na seqüência evolutiva, a partir do momento em que a segmentação silábica é alcançada, parece ocorrer um direcionamento da atenção da criança para os componentes sonoros das palavras, mais especificamente, para os elementos intrassilábicos e para os fonemas propriamente ditos, marcando as chamadas fases silábico-alfabética e alfabética. Entretanto, chegar à hipótese considerada alfabética não significa ter encerrado um ciclo de aprendizagem, mas sim ter alcançado uma nova etapa, repleta de novos desafios. Os problemas agora parecem de outra ordem, implicando a compreensão e o domínio das regras e convencionalidades da escrita, ou seja, a apreensão do sistema ortográfico.
Tem-se mostrado possível observar uma seqüência evolutiva que se caracteriza pela construção de conhecimentos a respeito da língua falada e as possibilidades de representá-la por meio das letras, ou seja, através da língua escrita. Podemos falar da construção de conhecimentos metalingüísticos, que se constituem a partir de um processo de reflexões sobre a língua. Esta forma de a criança construir seus conhecimentos permite-nos compreender quais são os aspectos que se apresentam como essenciais, e mais complexos, e quais os que podem ser considerados secundários no desenvolvimento da escrita, e por isso mesmo, menos difíceis.
A formação de princípios gerativos e generalizadores que constituem as hipóteses infantis e que determinam as diversas formas que elas apresentam de representação gráfica podem ser acompanhadas desde as fases mais iniciais da aprendizagem da escrita. Também fica evidente que não se trata simplesmente de desenvolver habilidades motoras e perceptuais como discriminação, memória, noções viso-espaciais, de lateralidade e assim por diante. As noções fundamentais que estão realmente em cena dizem respeito à compreensão do que é a linguagem oral, de como ela se constituí, de quais são suas características e como elas podem ser representadas pela escrita. O tema principal da aprendizagem, dentro dos aspectos aqui abordados, recai sobre conhecimentos de ordem lingüística, mais especificamente, sobre a natureza alfabética da escrita, de sua convencionalidade, assim como de seus usos e funções sociais.
Quando pensamos, por outro lado, na questão da linguagem em si, fica evidente que tal seqüência de construção de conhecimentos acaba sofrendo uma forte influência das características do sistema lingüístico que a criança está procurando compreender. Como pode ser observado, existe uma série de aspectos lingüísticos que denotam diferentes graus de complexidade que, por sua vez, determinam graus variados de possibilidades de assimilação por parte da criança: alguns serão mais facilmente compreendidos, enquanto que outros, mais difíceis, estarão se colocando como altamente desafiadores. Para ilustrar esta variação, se pensarmos nas etapas iniciais da escrita, podemos verificar que a noção de fonema, enquanto uma unidade sonora da língua, é mais complexa que a noção de sílaba, o que se comprova pela própria seqüência evolutiva.
Caminhando neste processo de aprendizagem, se avançarmos um pouco mais na direção das características lingüísticas que a criança deve dominar a partir da fase alfabética, pode-se verificar que a noção de maior complexidade diz respeito às correspondências múltiplas, ou seja, compreender as relações variáveis entre letras e sons. Em seguida vêm as dificuldades em termos de diferenciar entre critérios fonéticos e critérios ortográficos, dada a influência da oralidade. Outro aspecto com alto grau de complexidade encontra-se nas relações quantitativas entre letras e sons, principalmente na representação de sílabas cuja composição foge do padrão consoante – vogal. Inversamente, no outro extremo de uma escala de complexidade encontramos a discriminação e diferenciação do traçado das letras e a posição que elas devem ocupar no espaço gráfico como aspectos de mais fácil e rápida compreensão. Estes fatos servem para reforçar a hipótese de que os elementos essenciais para o domínio da escrita são de caráter lingüístico e não simplesmente perceptual.
Para finalizar, pode-se reforçar a idéia de que as metodologias de ensino, assim como aquelas voltadas para intervenções de caráter clínico, deveriam estar levando em consideração, por um lado, o fato de que as crianças não aprendem simplesmente empregando recursos de memória e repetição. Elas aprendem na medida em que constroem hipóteses e, por sua vez, são estas hipóteses que revelam os conhecimentos que elas estão conseguindo alcançar em um determinado momento evolutivo.
As propostas clínicas e educacionais deveriam também considerar, por outro lado, que os conhecimentos construídos pelas crianças são fortemente influenciados pelas características do próprio sistema lingüístico que está sendo aprendido. Os esforços metodológicos, portanto, deveriam ser dirigidos no sentido de facilitar ou de tornar mais explícitos e acessíveis aqueles que são os maiores desafios para a compreensão infantil a respeito da linguagem escrita, diminuindo a ênfase nos aspectos de treinamento de processos perceptivos para investir no desenvolvimento de procedimentos gerativos e generalizadores, de natureza lingüística
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Contato: jaime@cefac.br |
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